quinta-feira, 31 de outubro de 2013

DOIS ASSUNTOS

BOLSA-FAMÍLIA

Fernando Rodrigues, outrora vivaz repórter que descortinou a compra dos votos para a reeleição de FHC, hoje escreve ao gosto do patrão, a Folha: "Até quando o Bolsa Família será vital nas eleições presidenciais no Brasil?"

A pergunta retórica é para destilar seu repertório anti-petista: "Se depender do PT, para sempre." Depois de algumas rasas ponderações sobre a disputa eleitoral, salteada pelo inexorável refluxo da economia, finaliza: "interessa a Dilma e ao PT manter o programa bem vivo na mente dos eleitores mais pobres".

Penso que na verdade seria melhor que os eleitores mais pobres se lembrassem das falas que receitam o aumento do desemprego e redução dos salários. Que se lembrassem como era a vida durante o governo FHC. Aí sim, as massas ignaras votariam conscientes, nos senhores que melhor empunham o chicote. Parece o Prof. Hariovaldo, mas é o repórter da Folha que nos conduz a esse raciocínio.

Melhor que eu, o próprio Lula pode responder até quando a elite terá que aturar "essa gente":
  
"É mais difícil vencer o preconceito que a fome.
Chamam de “Bolsa Vagabundagem”, mas 70% dos adultos do Bolsa trabalham.
Eles têm preconceito: acham que se é pobre por indolência.
Para a mãe, o dinheiro do Bolsa não é esmola: é um direito !
O eleitor não precisa mais trocar o voto por um prato de feijão, por uma cuia de farinha.
Essa Sociologia que ataca o Bolsa está acostumada a servir à elite.
O Bolsa tem 10 anos e a injustiça vem de 5 séculos."

Fernando Rodrigues não explicita, mas claramente prefere a época onde os votos eram vendidos a troco de botinas, de um saco de arroz, ou até mesmo em troca do transporte até a urna. Os 500 anos de opressão não o amolam tanto quanto a importância que o governo do PT dá a essa programa de transferência de renda.

Mas voltemos ao "cara". Em outra parte de seu discurso hoje, por ocasião da comemoração dos 10 anos do bolsa-família, Lula, também ataca o arrocho pleiteado pela oposição:
  
"Se desemprego e arrocho salarial resolvessem, não existiriam os problemas que a gente tinha quando o PT chegou ao poder.
Se arrocho e desemprego resolvessem, a Europa já teria resolvido seu problema.
"

O PIG faz incessante campanha contra qualquer bolsa (aliás, contra qualquer política do governo federal, exceto o aumento de juros). Todo dia na TV e nos jornais temos exemplos de uma minoria que faz mal uso da bolsa, como se fosse mais importante que a maioria que se beneficia. Uma das coisas que mais incomoda às elites é que o Bolsa-Família entrega o dinheiro direto ao cidadão, e depende dele fazer bom uso. Para quem conhece as pequenas cidades do interior do país, isso detona o clientelismo, o escravismo a que o povo era submetido com cestas básicas e outras coisinhas. Além de lhes permitir recusar salários abaixo do mínimo...
Além de reconhecer os direitos trabalhistas das empregadas domésticas...
Essa dor de cotovelo não sara nunca!





PROCURADOR ESQUECIDO

O Procurador Federal de São Paulo, Rodrigo de Grandis, é protagonista de um dos episódios mais estarrecedores da História do Ministério Público: ele se esqueceu de atender a pedido da Justiça da Suíça que, inevitavelmente, levaria à punição de uma revoada de tucanos de São Paulo, envolvidos até medula do propinoduto.

Logo ele, que deveria procurar as coisas, as esqueceu dentro de uma gaveta.

Em 2011.

E desde então, nenhuma vez, teve a curiosidade despertada!

Fico pensando naquela legião de bocós açulados pelo PIG, marcheteando contra a PEC-37 como se essa fosse uma causa de comoção nacional. Numa palestra para secundaristas, da qual fui debatedor, ouvi um professor afirmar aos alunos, ainda que com a voz trêmula, que a PEC-37 era uma censura ao MP. Que falta faz essa censura hoje, hein? Um amigo, promotor de justiça, ainda com um pingo de sensatez, me disse que era um temor deixar todo poder investigatório nas mãos da polícia, de histórico repressivo contra pobres e subserviência com o poderosos.

Lindo, mas será que Rodrigo de Grandis se travestiu de delegado? Logo ele, que todo faceiro, bradava por punição aos condenados no Mensalão? Segue os passos de Roberto Gurgel que obstruiu e retardou a investigação sobre Carlinhos Cachoeira que respingaria no seu par, Demóstenes Torres. Todos os perigos aos quais fomos alertados contra a PEC-37, na maior mobilização corporativista da nossa história, estão acontecendo: favorecimento aos criminosos do colarinho branco, anuência com a corrupção, impunidade... Alivio, é claro, para o PSDB!

Mas há salvação. Como alertou Paulo Moreira Leite, o Procurador tem que ser enquadrado no crime de prevaricação, previsto no art. 319, do CP: Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Só não há cura para a cara de tacho dos que creram na farsa que mobilizou o país. Os que acreditaram na fúria do Jabor contra a PEC 37. Quem rompeu o bloqueio da Globo e está sabendo do fato, deve estar com vergonha. Ou se sentido usado. Ou os dois.

 


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

PROTESTOS, CACHORROS E PETRÓLEO

PROTESTOS

1. Toda manifestação com o mínimo de organização deve coibir a infiltração e expurgar os Black Blocs. Eles deslegitimam qualquer causa. Antes de ser ilegal o anonimato, é imoral numa democracia com amplas salvaguardas como a nossa que se vista carapuça para defender ou atacar qualquer coisa. Afinal de contas, esses pulhas são pelo quê? E na prática, onde atuaram pela derrubada do velho, colocaram o quê no lugar? Nos dois assuntos que pretendo tratar adiante, eles se imiscuíram e deformaram seus reais significados.



É falsa a sugestão de que se aproximam de uma democracia direta ou ateniense da idade clássica. Essa é a versão de jornalistas semi-cultos que ignoram como funcionaria uma democracia direta e que crêem na versão popularesca de que Atenas era governada pelo Ágora – uma espécie de Largo da Candelária repleto de mascarados e encapuzados trajando luto. Os Ágoras só tratavam de assuntos locais de cada uma das dez tribos atenienses. Em outras três instituições eram resolvidos os assuntos gerais da cidade, entre elas a Pnyx, que acolhia os primeiros seis mil atenienses homens que lá chegassem. Ali falava quem desejasse, apresentassem as propostas que bem houvessem e votos eram tomados. Os nomes dos proponentes, porém, ficavam registrados e um conselho posterior avaliava se o que foi aprovado fez bem ou mal à cidade. Se mal, seu proponente original era julgado, podendo ser condenado ao confisco de bens, exílio ou morte. A idéia de democracia direta como entrudo, confete e um cheirinho de loló é criação de analistas brasileiros.

CACHORROS

2.1. Sou totalmente a favor do respeito aos animais como seres que não devem ser utilizados pelos homens. Não acredito que a haja uma hierarquia natural entre a vida humana e a dos outros animais. Se ela existe, se baseia em força e astúcia, não em razão e justiça. Para mim, não serve.

2.2. Algum dia, a humanidade sacou que o limite ético para coisificação de outros homens não permitiria testes em laboratório (como os nazistas, ou norte-americanos em Tuskegee e na Guatemala), nem escravidão jurídica.

2.3. Em termos sumários, proponho que estendamos nosso limite ético: que sejam extintos todos os experimentos que impliquem em dor ou sacrifício animal. Que a modelagem dos testes que restarem sejam públicas. Que a ciência pare de usar expedientes medievais para acobertar aquilo que causa repulsa nas pessoas. E que se o seu filinho de quatro anos não tiver o remédio que vai lhe curar, e for morrer por que não matamos infinitos macacos, cachorros, coelhos e camundongos por causa disso, assumiremos a responsabilidade de viver em uma sociedade diferente da atual, cuja incoerência intrínseca justifica a morte de uns em nome da vida de outros (?!?!?!)

2.4. Me causou surpresa quem melhor descreveu as reações sobre o resgate dos beagles, em São Roque. O Esquerdopata definiu muito bem o que é a luta em defesa dos animais: "garanto a vocês que 100% (não 95 ou 99) dos que reagem às boas ações a favor do animais com ironias sobre a falta de interesse dos protetores de animais pelas criancinhas (sniff...) nunca, jamais e em tempo algum fizeram nada por crianças em situação de necessidade. Desnecessário provar, mas se alguém quiser pode me mostrar um defensor das 'criancinhas pobres' que não faça nada por animais ou pelo meio ambiente ou seja lá pelo que for. Civilidade, bondade e vontade de criar um mundo melhor não vêm em porções separadas". Para finalizar, ele retira o véu que cobre os hipócritas: "o que critico e desprezo é essa posição de quem não faz nada por ninguém e sempre usa essa desculpa de que tem coisa mais importante a ser feita. Se você acha que tem coisa mais importante a fazer, faça. Simples assim. Não precisa criticar e ofender quem faz coisas 'menos importantes'."

2.5. Nunca entendi porque politicamente a bandeira de defesa dos animais estava nas mãos de direitistas como Feliciano Filho e Roberto Trípoli. Eis que, mais uma consequência positiva no caso dos beagles, Protogénes Queiroz tomou a iniciativa de ir ao Instituto Royal e propôs uma comissão de investigação parlamentar. O custo pela demora na esquerda em se manifestar, está nos comentários dos trolls: oportunismo. Não me parece. Vejamos os próximos passos.

2.6. Escrevi um texto sobre maus tratos e comportamento humano em 2009. Está aqui. Há duas vertentes sérias para a discussão. A primeira, simbolizada por Peter Singer, pensador australiano, escritor de Libertação Animal (1975), que divulgou a categoria "especismo": a atribuição de valores ou direitos diferentes a seres de diferentes espécies. Análoga ao racismo e ao machismo, a discriminação especista pressupõe que os interesses de um ser são de menor importância pelo mero fato de pertencer a uma determinada espécie. Infligir dor a um animal sem se preocupar com isso é ignorar o princípio básico da igualdade. Singer considera que todos os seres que são capazes de sofrer (sencientes) devem ter seus interesses considerados de forma igualitária e conclui que o uso de animais é injustificável.

2.7. Mas em geral sua filosofia é utilitarista, e admite que se faça um mal (não só contra animais) se os benefícios dele decorrentes forem maiores. Por isso também tem seu limite, e se exaure no "bem estarismo animal": a proteção do semovente enquanto propriedade humana, e a condenação dos maus tratos por prejuízos de ordem econômica.

2.8. A inclusão de todos os animais sencientes na comunidade moral é defendida pelo professor de Direito Gary Francione. Ele afirma que a capacidade de sofrer é o único determinante válido para o status moral. Seu trabalho parte da premissa de que a condição de propriedade atual impede aos animais qualquer direito garantido. Falar em igual consideração de interesses de uma propriedade contra o próprio interesse do proprietário é um absurdo que tende ao cinismo. Sem o direito de não ser propriedade, não há quaisquer outros direitos. Por sugerir a abolição da condição de propriedade dos animais, o termo "abolicionismo" é utilizado para designar esta ideia.

PETRÓLEO

3.1. Li tanta coisa a respeito que ferveram meus miolos, como diria o turco Nacib. À princípio, por orientação ideológica - e pelos números apresentados, acreditei que o resultado do leilão e o modelo de partilha são um passo gigantesco na formação de um país com maior justiça social. As críticas, alinhadas ao PIG, ao grande capital financeiro e travestidas com suas máscaras a la V de Vingança, me causaram aversão.

3.2. Os números, que vão além dos que a presidenta Dilma apresentou em seu pronunciamento, são alvissareiros. Lejuene Mirhan foi quem conseguiu demonstrá-los com mais didatismo, na minha opinião. Senão vejamos:

Preço do barril = US$100.00
Custos de Produção = US$30.00
Royalties da União (15%) = US$15.00
Parte da União na Partilha (41,65%) = US$22.9 (sobre US$55.00 que sobram depois de retirar os custos de produção e os royalties)
Parte das Empresas do Consórcio = US$32.1 (restante da diferença dos US$55.00)
Imposto de Renda = US$8.02 (25% sobre o ganho das empresas)
CSLL (Contribuição sobre Lucro Líquido) = US$2.89 (9% sobre ganho das empresas)
Lucro Final do Consórcio = US$21.18
Lucro da Petrobrás = US$8.47 (Ela tem 40% sobre o lucro final)
Dividendos do Governo sobre a Petrobras = US$4.06 (Lembremo-nos que a União tem 48% das ações da Petrobrás que repartem lucros e esse percentual é aplicado sobre US$8.47)
Fatia Final da União = US$52.88 (Essa soma leva em conta os royalties, mais os 41,65%, mais IR, CSLL e lucro da Petrobras).

Ou seja, do lucro de US$ 70,00 na extração de cada barril, 75,55% ficarão com a União. Às empresas privadas do consórcio vencedor (com 20%) terão, para cada US$ 6,00 investidos, um retorno de US$ 10,23, um lucro líquido de 61,23%. Prevê-se a extração de 10 bilhões de barris em 30 anos. Quase US$ 1,5 bi por ano livre de ônus.

3.3. Assim, todos ganham e vivemos felizes para sempre? Errado! Minha primeira preocupação foi exposta por Paulo Henrique Amorim: quem vai defender o pré-sal? Quem garante que não seremos atacados pelo mar? Será que os EUA ficarão satisfeitos com nossa evolução de país satélite à "player" global? Aonde está estacionada a 4.ª frota, a que "policia" a América do Sul? E, como desdobramento, se aparelharmos muito bem nossas forças armadas, qual é o risco? Pelo histórico, a quem eles se subordinarão?

3.4. Outras preocupações honestas foram apontadas no blog da Maria Frô. A primeira sobre uma suposta urgência no leilão, atropelando o diálogo com os movimentos sociais. "Por conta da gradativa evolução do uso de outras fontes de energias mais limpas, que envolvem tecnologias inovadoras, o pré-sal poderia deixar de ser “bilhete premiado” dentro de algum tempo, e aí o Brasil perderia espaço na correlação de forças mundial sobre as reservas de petróleo". Um bom argumento, mas que ela mesma refuta: "em 30 anos a energia suja continuará a todo vapor, o capital está se lixando para o meio ambiente".

3.5. Outro ponto, este sim envolvendo a soberania nacional, puxa o fio da meada de uma série de objeções publicadas por Hildegard Angel, nossa militante socialite mais consciente (mais improvável que isso, só mesmo a Luisa Mell revolucionária): a questão da transferência de tecnologia. Porque NINGUÉM no mundo detém a tecnologia para extração de petróleo a 6.000m abaixo do nível do mar, e somente a Petrobrás tem a capacidade de fazer sua prospecção. Todos exigem que, na compra dos aviões militares, as técnicas de construção sejam repassadas para o Brasil. Mas e agora? A Petrobrás, sócia majoritária do consórcio, vai passar para os demais como se acha óleo em alto-mar?

3.6. Essa e outras polêmicas conseguiram me deixar com a pulga atrás da orelha. Principalmente a nomeação do presidente da PPSA, Osvaldo Pedrosa, primeiro brasileiro a defender o fim do monopólio do petróleo e ex-braço direito de David Zilberstajn, na ANP de FHC. Uma raposa a cuidar do galinheiro.

3.7. Com o coração apertado (e não sangrando, como o da Hildegard Angel), prefiro conceder o benefício da dúvida ao governo, que apesar das inúmeras contradições, mostrou uma firmeza jamais vista na questão da prévia regulamentação da destinação dos recursos que serão auferidos deste tesouro do fundo do mar.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

CAPITALISMO E DESTRUIÇÃO DA INFÂNCIA

INTRODUÇÃO

1. Do início do feudalismo até meados do séc. XVI, o poder político se concentrava no monarca. De baixo refinamento teórico, sua essência foi descrita tardiamente por Bossuet (1627-1704), no que tange à origem transcendental, o direito divino dos reis, representantes mundanos do maior poder ao qual o homem do medievo reverenciava, o poder de Deus. “O trono régio não é o trono de um homem, senão o do mesmo Deus”.
2. Como reação à autocracia surge o liberalismo, que conforma em suas teses, não sem contradições internas, os anseios da emergente classe burguesa com a manutenção dos privilégios aristocráticos. Em que pese suas pretensões universais, o liberalismo nunca encampou os desejos das classes inferiores – servos de gleba, artesãos, incipientes trabalhadores urbanos. Também se presta a pano de fundo teórico do capitalismo, que empírico não foi idealizado previamente.
3. Essa introdução propositalmente esquemática, tem como objetivo esclarecer que a doutrina liberal jamais se coadunou com as necessidades populares. Apesar de buscar no povo sua legitimação, os procedimentos de ascensão, exercício e manutenção do poder político nunca foram acessíveis erga omnes. Desde sua gênese, o liberalismo se funda numa farsa.

A INFÂNCIA NO INÍCIO DO CAPITALISMO

4. Outros engodos, considerados pouco atrativos hoje em dia, participaram da matriz dessa ideologia. Para John Locke (1632-1704) convém, já desde os três anos, direcionar para o trabalho as crianças das famílias que não têm condições para alimentá-las. Necessária também a intervenção na vida dos seus pais, retirando a guarda e o respectivo pátrio poder, entre outras restrições.
5. Um século à frente, não há divergência substancial entre o posicionamento de Locke e Jeremy Bentham (1748-1832), que fala com entusiasmo das fábricas onde crianças até os quatro anos de idade ganham alguma coisa, e com cinco ganham o suficiente para viver bem (!). Diante desta lógica, torna-se positivo “tomar as crianças das mãos dos pais o mais possível e até totalmente”. Uma vez interditadas, as possibilidades são imensas:
Vocês podem jogá-los em uma casa de inspeção e depois fazer o que bem entenderem. Poderiam permitir, sem remorso, ao pais de dar uma espreitada por trás da cortina no lugar do mestre. Com isso, poderiam manter separados por 17 ou 18 anos os vossos jovens alunos homens e mulheres”.

6. A situação degradante imposta às crianças das famílias mais pobres nos primórdios do capitalismo causa repugnância até em alguns liberais. É do economista Edward Wakefield (1796-1862) a sentença que define com clareza o que ocorria: “Não sou eu, é toda imprensa inglesa que chama de escravos brancos as crianças inglesas” de derivação popular. “São obrigadas a jornadas tão extensas que desmaiam de sono nas manufaturas para depois serem acordadas e tornarem ao trabalho mediante pancadas e suplícios de toda espécie”.
7. Pior é a situação dos que não são reclamados, dos órfãos. É dessa época a transformação dos institutos de acolhida, os orfanatos: na Idade Média tinham por função receber os filhos portadores de deficiência e os espúrios, educando-os para a vida religiosa. Daí, passam a recinto de treinamento para trabalhos forçados, as chamadas casas de correção. Nas portas destas casas haviam anúncios que promoviam a venda dos infantes, o que novamente é atestado por Wakefield: “Em Londres, o preço de meninos e meninas colocados assim no mercado é sensivelmente inferior ao dos escravos negros na América; nas regiões rurais, a mercadoria em questão é ainda mais barata”.
8. Desfilando mórbida ironia, Jonathan Swift (1667-1745) apresenta uma “Modesta Proposta para impedir que os filhos dos pobres da Irlanda pesem sobre seus pais ou sobre o país, tornando-os úteis ao povo”. A sátira buscava evitar a essas crianças a penúria e o desabrigo a que estavam condenadas, poupá-las das doenças, agravadas pela fome e pelo frio, e dos vícios que vicejavam nas ruelas imundas, salvá-las da vida solitária de trombadinhas perseguidos ou operários explorados horas a fio. Swift propunha, crítica e jocosamente, reservar 10% das crianças para procriação, perpetuando a espécie, e o restante que fossem engordadas e abatidas tais quais porquinhos, tornando-se refinada iguaria nos banquetes dos grandes proprietários. A pele, no dizer do autor, é igualmente deliciosa, mas quem, por qualquer particularidade gustativa, não a apreciasse, poderia empregá-la na confecção de luvas, por exemplo. O material não é apenas bonito, bem como macio e resistente, garante Swift. Chocando meio mundo, a proposta repercutiu como um grito de fúria do povo irlandês. A troça do autor mostrava a que ponto a miséria pode atingir os homens, sob o patrocínio do sistema liberal-capitalista.
9. Outra manifestação literária se dá no insurgente realismo. O clássico Oliver Twist, de Charles Dickens (1812-1870), narra as aventuras e desventuras de um garoto que sequer nome tem, tratando do fenômeno da delinqüência causada pelas péssimas condições de vida das classes subalternas. Levado a um reformatório em tenra idade, Oliver é exposto a situações humilhantes até ser adquirido por um comerciante que precisa de um capataz. Não suportando o jugo de seu proprietário, foge para Londres, e é apresentado à atualíssima condição dos menores abandonados, que vivem nas ruas praticando delitos de todos os gêneros, de forma a garantir sua subsistência. Ainda que apresente um final conciliador, com o jovem sendo adotado por um benevolente aristocrata, fica óbvio o insignificante alcance da caridade privada e a calamitosa desigualdade social causada pelo novo (à época) modelo de produção, às custas da exploração do trabalho alheio.
10. Marx (1818-1883) denuncia o “grande rapto herodiano” das crianças realizado pelo capital no início do sistema de fábrica nas casas dos pobres e nos orfanatos, por meio do qual incorporou um material humano totalmente desprovido de vontade. Além da utilização das casas de correção como fonte quase inesgotável de mão-de-obra passiva a custo ínfimo, é possível tecer considerações de caráter mais geral: os filhos dos pobres estão destinados à primeira ocasião a serem utilizados exatamente na sua qualidade de instrumentos e máquinas de trabalho, o que se explicita no relato de Engels (1820-1895) acerca das condições da classe trabalhadora na Inglaterra do século XIX, reportando minúcias, que iam da forma de construção das sub-habitações a alimentação, precária, decomposta e insuficiente. Lembremos que formavam quadros da classe trabalhadora operários de até quatro anos de idade, e não havia complacência que isentasse os pequenos das agruras generalizadas.
11. Remonta à essa época a definição etmológica de proletário: os descendentes das grandes proles típicas do povo campesino, objetivando o número de filhos suficientes para cultivar a terra. Com uma das mãos, o capitalismo expulsou essas populações dos campos, graças ao cercamento das terras, rumo aos caminhos e estradas. Com a outra, sancionou uma brutal legislação que previa o enforcamento sumário de todos que se encontrassem em vadiagem ou mendicância, coagindo a migração para as grandes cidades e constituindo o excedente populacional que caracteriza desde então a classe trabalhadora. Outra ponderação é lembrar que a Inglaterra era a maior economia do mundo, sediando um império tão vasto, ao ponto de se dizer que sob seu solo o sol jamais se punha. Apesar de tamanha pujança e abastança, a infância dos humildes foi relegada a desumanidade. O que imaginar então dos rincões onde o capitalismo não foi capaz de gerar a mesma riqueza?

DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
12. Varrida para debaixo do tapete da historiografia oficial, a situação apresentada não dista muito dos dias atuais. A novidade momentânea é a capacidade sistêmica em absorver na infância seu primeiro segmento de mercado. As tradicionais festas religiosas perderam completamente seu significado imaterial para se converterem em pretexto à compra de presentes – no caso, as crianças são os maiores consumidores em potencial.
13. Nesse contexto, a infância pretensamente digna oferecida à burguesia, desumaniza tanto quanto se permite. Ao invés das consagradas brincadeiras infantis, do ludismo que caracteriza essa etapa da vida, vemos pequenos adultos de quatro anos manuseando computadores, sob pena de uma futura limitação ao ingressar no mercado de trabalho. Recente pesquisa aponta que uma criança com alto padrão de vida já consumiu, aos cinco anos de idade, mais de 1.000 objetos. Estes, com embargo, têm em seu custo o valor agregado de infinitas marcas, propagandas e personagens.
14. As implicações desse modo de vida profundamente alienado se refletem na precarização das relações sociais. Estas se dão, em última análise, apenas no consumo. Cada vez mais precocemente se sedimenta a compreensão de que se mede um ser humano pelo que ele tem, e não pelo que ele é! Em contrapartida, os adultos gerados por essa deformidade social crescem com sentimentos infantilizados, sempre propensos a se enganarem pelos encantos propangandísticos. A máxima depreendida do senso comum, de que “o que muda de um adulto para uma criança é o preço dos seus brinquedos”, vai se revestindo de aspecto perpétuo e inquestionável.
15. Toda ilusão consumista que o capitalismo oferece sob a aparência de felicidade cobra seu preço. Prevalecem as leis do mercado, e como a procura aumenta, o tempo se torna uma mercadoria valorosíssima. E as crianças estão perdendo seu precioso e irretornável tempo de formação intelectual, alternando-se ora em sujeitos, ora em objetos de consumo, expostos ao ridículo pelos pais nos concursos de talentos mirins. Instigados à férrea competição quando estariam naturalmente desenvolvendo noções de convivência, de civilidade, transformar-se-ão em que tipo de adulto?
16. Outra conseqüência desastrosa da perda da infância e da fetichização do consumo é a própria fetichização humana. Meninas seguem o padrão de vestuário e de comportamento das festejadas apresentadoras de televisão e das dançarinas, reedição não menos promíscua das antigas coristas, pelo contrário. Se explora uma proto-sexualidade e uma sensualidade ainda em desenvolvimento – forçado – cada vez mais cedo.




O FRACASSO DA ALTERNATIVA LIBERAL-CAPITALISTA
17. As legislações liberais contemporâneas contemplam o direito à infância como inalienável, reservando em alguns países inclusive a dignidade de cláusula pétrea. Não é necessário um exame mais aprofundado para, no contraste com a realidade, percebermos a falácia dessa garantia. Na verdade, precisa-se de grande cinismo para acreditar que a mera condição jurídica seja suficiente para que a preservação da infância, da formação psíquica e moral do cidadão, e de toda assistência que lhe compraz, esteja assegurada. As concessões legais têm forte inspiração socialista, onde pela primeira vez, por exemplo, se estipulou uma idade mínima para o início da carreira profissional. Resta claro que se trata de uma forma de amainar os ímpetos revolucionários, pois somente um alienado se satisfaria com o que o liberalismo reservou para a infância nos seus diplomas legais. Nesse caso, quem se alienou da própria vida, foi todo o direito burguês.
18. Por fim, não podemos nos cegar para um dado conseqüente desse exame, e perturbador: a explosão, endêmica, da pedofilia, na forma atual do capitalismo. Nunca na história da humanidade tal prática esteve tão alastrada. Sinais dos tempos.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

PRIVATARIA NA CARNE

Extra! Extra! Notícia que nem o PIG conseguiu manter escondida: Brasil tem o celular mais caro do mundo!

Novidade?

Apenas ter sido noticiado pelos próprios arautos da política neoliberal, que entregou setores estratégicos da economia aos privatas, sob o discurso de melhorias na gestão e eficiência dos serviços. Essa lenga-lenga, não lembra Eduardo Campriles?

Quando você ouvir um privata dizendo que foi depois deles que o brasileiro passou a ter celular, pergunte como era a situação no mundo, antes da evolução tecnológica: Em 1989, haviam apenas 4 milhões de usuários. Em 2000, 700 milhões. E em 2013, 6,6 bilhões. O que aconteceu no Brasil foi que esse movimento de ampliação ao acesso de um poderoso instrumento de comunicação se deu no exato momento em que FHC e sua patota passava nos cobres o patrimônio do povo brasileiro.

E quanto à telefonia fixa? Para ilustrar a situação, como aconteceu no mundo tangível de fato, trago três casos reais que aconteceram de verdade:

1. Aristoclides é muito metódico. Sistemático, como diriam os goianos. Guarda todos os recibos de conta telefônica, desde que adquiriu a linha, muitos anos atrás. Lamenta até hoje ter perdido as ações da companhia. Mas para ficarmos no plano real, tomemos a conta de agosto de 1994. A assinatura básica mensal custava R$ 0,44. Em valores corrigidos, pelo IGP-M, hoje seria R$ 2,42, com impostos inclusos. A calculadora do cidadão faz essa conta rapidinho (se você tivesse colocado na poupança, R$ 0,44 em agosto de 1994, hoje teria a exultante quantia de R$ 3,62!). Atualmente, o valor da assinatura básica mensal varia entre as operadoras, mas gira em torno de R$ 40,00, um singelo aumento de 9.000%!

Aristoclides agora quebra a cabeça para entender a discriminação dos serviços de sua conta telefônica. Mas já completou a quarta caixa de papéis.

2. Tiburciano se cansou da vida agitada da grande metrópole bandeirante já no início dos anos 80. Ajuntou suas economias e comprou 32 alqueires (paulistas) próximos à Porto Ferreira. Em 1986, se tornou sócio da extinta TELESP, ao adquirir as ações de autofinanciamento para um telefone em sua propriedade rural. Pagou caro, é verdade: à época, o preço de um Monza zero quilometro. O tempo passou e hoje a empresa privata que surrupiou a TELESP assume não ter capacidade técnica e operacional de continuar prestando o serviço. Pediu encarecidamente que ele desistisse da linha. Ofereceu, à título de indenização, R$ 1.600,00. Tiburciano, indignado, consultou um advogado, que lhe explicou: nas várias outras ações semelhantes que patrocinou, a VIVO foi condenada até o limite de 40 salários mínimos. Nenhum centavo além disso, com os honorários por conta do reclamante.

Agora sim, Tiburciano saiu feliz da vida: com esse montante, pela tabela FIPE, hoje ele compra seis Monzas 1986, e em bom estado!

3. Jereboão se mudou para Palmeiras de Goiás por causa do trabalho, em abril de 2010. O município tem como único atrativo ser a terra do governador Marconi Perillo. Antenado que era nas questões digitais, logo queria internet. De imediato, apenas a via rádio. Não servia, pelas constantes interrupções. Na empresa privata que atende ao município (por telefone, pois não há loja física; a mais próxima fica em Goiânia, a 90 km), a OI, lhe foi informado que ele teria que entrar numa fila de espera. A mãe de Jereboão lhe aconselhou paciência e resignação, pois era assim antes da privatização.

Acontece que a empresa liberava apenas um número limitado (500) de "portas" para conexão, e todas as do município de 25.000 habitantes estavam preenchidas. Não havia nenhum plano de expansão e, portanto, restava aguardar alguém desistir (ou morrer) para um novo acesso. Mas não é só isso: aí, haveria uma pequena competição para ver quem daria o maior suborno ao técnico para ocupar o concorrido posto de portador de internet banda larga (não muito, 256kb) da OI em Palmeiras de Goiás!

Jereboão pediu transferência para uma cidade maior. Conseguiu, no fim de 2011. E arrumou um esquema para usar internet de graça (gatonet).

terça-feira, 1 de outubro de 2013

O PRÍNCIPE DA PRIVATARIA - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Interessante que a última postagem teve muitas visualizações - na realidade, foi a mais vista desde que o blog ressuscitou. Isso diz muito: o nome do livro é um chamariz para o público. Não é à toa que frequenta todas as listas de best-seller, rompendo o constrangedor silêncio do PIG. Mas vamos aos comentários.

1. Não se trata de uma resenha literária. É apenas um apanhado de impressões subjetivas de um leitor ávido pelo assunto. Terminei a leitura já há uma semana, tempo suficiente para esquecer minudências e matutar a respeito do que encorpa o livro.

2. Como antes, começo com uma crítica. São elencados vários dos escândalos tucanos na presidência. Mas alguns deles são apenas mencionados, talvez guardados para uma continuação. Exemplos: PROER e SIVAM, dois absurdos, um no aspecto financeiro, outro no campo da soberania nacional. Talvez, na continuidade, haja espaço para as declarações desastrosas, mas com a empáfia de erudito que caracterizou FHC.

3. O trabalho de Aloysio Biondi parece ser o ÚNICO que entrou a fundo na questão das privatizações. É uma referência constante n'O Príncipe da Privataria, inclusive numa "entrevista póstuma", licença humorada de Palmério Dória que perfaz o cap. 16. Adiante, noutra passagem ele levanta o tapete da sujeira: várias empresas foram vendidas com dinheiro em caixa, mas NÃO EXISTEM INVENTÁRIOS! (pág. 354). Parece que as informações oficiais foram apagadas do registro público. Hoje, tantos anos depois, talvez seja impossível investigar em números o que aconteceu de fato.

4. Frase do tucano arrependido Luiz Carlos Bresser Pereira: "Só um bobo dá a estrangeiros serviços públicos como as telefonias fixa e móvel" (pág. 282).

5. FHC não foi presidente do Brasil, apenas um títere. Isso não o isenta de culpa nos vários episódios de seus dois mandatos, mas essa conclusão é inevitável a partir da citação do livro "A melhor democracia que o dinheiro pode comprar", do norte-americano Greg Palast, cujo primeiro capítulo se intitula: "Sua excelência Robert Rubin, Presidente do Brasil". Rubin era secretário do tesouro dos Estados Unidos e manda-chuva do FMI. FHC, o presidente nominal, seu subordinado. Aquilo que na retórica do PIG era culpa dos funcionários públicos aposentados e sindicatos escondia a cartilha a qual estávamos subjugados: "eliminar os gastos sociais, cortar a folha de pagamento do governo, quebrar os sindicatos e, o verdadeiro prêmio, privatizar empresas públicas lucrativas" (pág. 260).

6. O processo de privatização foi um desastre. FHC, como um estróina, torrou uma parte constitutiva do orçamento público e, em seu lugar, aumentou a carga tributária, de 27% para 36% (portanto, não acredite no discurso do PSDB de redução de impostos. É cascata). Os serviços públicos encareceram e pioraram miseravelmente. Foi a "maior estupidez político-estratégica que se fez no país", desconsiderando os trambiques. (pág. 268). Mas não dá para "desconsiderar": assim como está vindo à tona o propinoduto paulista, a farra das privatizações criou uma redoma de bilionários no país , como Benjamin Steinbruch, Roger Agnelli, Daniel Dantas, sem contar o capital apátrida que expropriou nossas riquezas. Nota sórdida: FHC escolheu (sic) o Banco Opportunity, de Daniel Dantas, para administrar os fundos do iFHC, cujo capital estatutário é da ordem de R$ 84 milhões. Sobre isso e como se formou o iFHC, o capítulo 35 (pág. 361) é translúcido.

7. Por fim, gostaria de exibir as insuspeitas capas dos jornais, que ilustram o livro na pág. 259. Consegui colar essas duas, mas são seis. Esse trabalho fala de muitas outras. No momento em que bati os olhos e vi as manchetes, me dei conta do quão importante é a leitura deste livro como testemunho da nossa história recente. Há tantos brasileiros com menos de 25 anos que não vivenciaram essa verdadeira idade das trevas, que se torna fácil manipulá-los, colocá-los na rua "contra tudo o que está aí", sem se dar conta de que quem está por trás disso, quebrou o país e quase nos tornou um estado joguete sem eira nem beira na geopolítica mundial.