segunda-feira, 28 de julho de 2014

MÁRIO SCOTT, O DOS LOCOMOTIVAS

Trecho extraído do capítulo 7 do livro "Homens e Coisas do Partido Comunista", de Jorge Amado, Ed. Horizonte, Rio de Janeiro, 1946.


Não sei de nada tão triste e perverso quando um destes homens amargados, fracassados da literatura e da vida, possuídos por um complexo de inferioridade, cheios de inveja, que por todas essas condições terminam na traição trotskista. A ambição é o farol da sua vida, a inveja é o seu roteiro. Dão-me sempre a impressão que trazem espuma na boca, espuma de raiva e um dito mesquinho sobre qualquer pessoa decente. Quando encontrardes um homem assim não precisareis perguntar-lhe sua filiação política: se não for trotskista será com certeza fascista o que, no fundo, redunda na mesma suja condição de traidor do povo.

Foi um destes seres míseros que indagou de um companheiro nosso, num encontro casual de rua:

— Quem é esse Mário Scott que vocês inventaram?

Nada é mais doloroso para um trotskista que ver um operário à frente de um movimento de massas, de um partido, de um comitê. Os trotskistas odeiam os operários, odeiam esses homens fortes que marcham para a frente sem penetrar nas sendas dos desvios nascidos do delírio pequeno-burguês desse esquerdismo que é o melhor auxiliar do fascismo. O que falava para o nosso companheiro tentava encobrir com um sorriso de superioridade a raiva de saber dos aplausos com que o proletariado paulista saudara o novo Secretário Estadual.

O companheiro sorriu e disse:

— Nós não inventamos Mário Scott. Vá perguntar aos operários quem é ele e ficará sabendo.

Antes de tudo um operário. Essa palavra “operário” significa muita coisa. Tem um conteúdo seu, político. Quer dizer segurança, lealdade, consciência de classe, compreensão do momento, espírito de sacrifício, perspectiva ampla, espírito partidário. As vacilações são próprias da pequena-burguesia inconstante e facilmente desviável, facilmente sectária, facilmente amedrontável. Mário Scott é antes de tudo um operário e essa é a sua primeira qualidade de dirigente. Outra qualidade, não menos importante, é não ter ele perdido sua condição de operário na vida de militante, ter-se conservado um trabalhador.

Mário Scott, quadro feito na ilegalidade partidária, não perdeu jamais sua condição de operário. Nele o operário está em cada palavra, em cada ato, no seu jeitão meio desengonçado mas também na sua firmeza inabalável. Gosto de ouvir suas imagens nos discursos aos operários. Gostaria que meus confrades de literatura, principalmente aqueles que pensam que escrevem de maneira popular, também as ouvissem. Essas, sim, são imagens populares e justas, e o que Mário Scott diz todos eles entendem.

Seu riso é franco e sua figura grande e sã recorda uma árvore do campo. Este é um homem das locomotivas, seu lar é o bojo fumegantes das máquinas arrastando vagões, mas ele lembra a terra, suas mãos são de camponês, sua voz é lenta como a dos tabaréus do interior. Um homem da terra, preso a ela, às suas realidades. Nele a modéstia não chega a ser uma virtude, é-lhe inata, faz parte do seu ser como os dedos das mãos. Também a franqueza, essa franqueza de operário que nunca é ofensiva. Um homem grande, de gestos calmos, alegre e confiante.

Certo pintor moderno muito tempo simpatizante do Partido, ao qual nunca faltara com sua ajuda financeira, estava amedrontado ante as condições de legalidade. Tinha medo que os operários dirigentes do Partido fossem homens duros e pouco compreensivos, incapazes de imaginar e sentir os problemas dos artistas, suas peculiaridades, sua condição especial de criadores. Esses problemas apavoravam o pintor e ele estava em crise, sem saber como se comportar agora ante o Partido, em cujos propósitos humanos confiava e ao qual se sentia ligado pelo mesmo ideal de uma vida melhor, mas ao qual temia. Eu o aconselhei a conversar com Mário Scott:

— Vá ver direito como é um operário dirigente do Partido e como ele recebe seus problemas de pintor e artista...

No outro dia o pintor surgiu radiante no meu apartamento :

— Nunca vi ninguém tão humano e compreensivo...

Não é por acaso que os ferroviários perguntam por ele em cada estação de cada estrada de ferro deste país de São Paulo:

— E o Mário Scott, como vai?

Falam com entusiasmo. Ouvi essa pergunta em dezenas de lugares. Em Piracicaba e em Sorocaba, em Barretos e em Três Lagoas. Ele se fez homem junto à fumegante caldeira das máquinas. Fala sobre elas com ternura na voz. Foi foguista e maquinista e no leito das ferrovias se desenvolveu sua vida de militante. Tenho sua autobiografia aqui ao meu lado. Ele a escreveu, com sua letra desigual, quando foi eleito para o cargo de Secretário Estadual da região de São Paulo. Pode ser que alguém vos pergunte, como perguntaram ao nosso companheiro, quem é esse Mário Scott, do Partido Comunista. Ouvi o que ele diz sobre ele mesmo:
“Nasci numa fazenda de café onde meu pai era trabalhador rural. Lembro-me da geada de 1917. Eu tinha seis anos e estava já trabalhando ao lado de meu pai, com uma enxadinha. Meu pai teve que fazer uma fogueira para nela esquentarmos as ferramentas. Aos dez anos mudamo-nos para a cidade e entrei para o grupo escolar que frequentei durante seis meses. Foi esse todo o tempo de estudo que tive até ficar homem. Só muito depois, no Partido, voltei a estudar. Deixei o grupo para acompanhar meu pai que então era mascate, ganhando a vida de fazenda em fazenda. Nessas peregrinações pude observar a vida das famílias nas fazendas de café e comecei a sentir a diferença entre a vida do campo e a da cidade. Com 12 anos vim, com minha família, para Sorocaba. Entrei logo para a Fábrica de Tecidos Santa Rosália. Fiquei então conhecendo a vida dos operários. Em 1926 entrei para a Estrada de Ferro Sorocabana, como limpador de locomotivas. Eu era nesse tempo quase que o sustentáculo da família pois meu pai, sem profissão certa, ganhava muito pouco. De limpador de locomotivas passei a ajudante de foguista e nesta condição fui ao Rio de Janeiro buscar a locomotiva 606. Esta viagem foi-me muito útil. Foi quando compreendi que o Brasil não era somente Sorocabana e São Paulo e que era necessário pensar em todo o país e não apenas no lugar onde a gente vive.

Em 1927 minha mãe faleceu. Um tio meu enlouquecera e não nos foi possível conservá-lo num sanatório. Enquanto pudemos pagar sua estadia no hospital, os médicos cuidaram dele, mas quando meu pai foi a São Paulo dizer ao médico que já não podia com as despesas então o médico declarou que meu tio estava curado e deu-lhe um atestado. Já nós sustentávamos a família de meu tio. Este voltou para nossa casa em companhia de meu pai e, mal eles chegaram, compreendemos que a sua saúde não havia melhorado, o atestado do médico era até uma falta de humanidade. Mas, que fazer? Era uma casa pequena e nela, além de minha mãe e meu pai, residiam seis filhos menores. Meu pai recorreu a tudo para conseguir internar meu tio: aos chefes políticos que lhe pediam voto, aos médicos, e tudo sem resultado. Minha mãe trabalhava para a família toda. Um dia, quando voltava da casa de uma vizinha onde fora coser na máquina emprestada umas roupinhas para os filhos, encontrou na porta meu tio louco, com um revólver na mão. Disparou dois tiros. Fiquei com 16 anos e era o responsável pela família pois meu pai entregou-se ao desespero.

E assim fui vivendo, em meio às maiores dificuldades. Alguns anos depois casei-me e vieram para a minha companhia dois irmãos de minha esposa. Já meus irmãos maiores começavam então a trabalhar na fábrica de tecidos. Ao casar-me era foguista e minha companheira era justamente a mulher que eu necessitava; cheia de saúde e coragem, de uma solidariedade a toda prova.

Com a revolução de 30 pensamos que tudo ia melhorar. Eu e o meu amigo Aurélio Sabadi tomamos parte nas comemorações da vitória e estávamos certos que uma vida nova ia começar. Aderimos aos sindicatos que então surgiam mas logo notamos que muitas das coisas que se passavam nos sindicatos não eram feitas com o fim de auxiliar os trabalhadores. Apesar disso eu compreendia que o Sindicato era uma boa organização, um meio do trabalhador defender os seus direitos. A luta sindical despertou em mim o interesse pelas questões sociais. Entrei em contato com diversas organizações e conheci então uns quantos homens — que eram exatamente aqueles mais trabalhadores, bons esposos, bons pais e bons amigos — dos quais se dizia que eram comunistas. Conversei com eles e raciocinei: “Então eu também sou comunista pois sinto a vida como eles”. Finalmente em 1933 eu ingressei no Partido e pela primeira vez tomei parte numa reunião. Fiquei maravilhado com a maneira como aqueles homens se tratavam. Havia um respeito mútuo, a linguagem que ali se falava era a da verdade. Daí em diante abriu-se para mim uma enorme perspectiva. Compreendi muita coisa, aprendi muito. O Partido foi a escola que não tivera antes. Nele comecei a realmente me educar, a me fazer um homem de verdade. Nunca mais deixei de militar no meu Partido, em meio aos meus companheiros de trabalho.


Tenho cinco filhos e acredito que para eles a vida será melhor do que tem sido para mim. Acredito que o mundo marche para uma era de paz e de felicidade. E tudo que desejo, como operário e como militante do Partido, é contribuir com o meu esforço para a construção da unidade nacional do povo brasileiro, caminho para a democracia e o progresso do Brasil”.
Aí está Mário Scott. Esse homem chegado das locomotivas é uma das figuras mais populares do Partido. Todos gostam dele, do seu jeitão desengonçado, da sua voz mansa, e todos sentem que ele é um homem íntegro, desses que se nos assemelham a imagens da terra poderosa e fecunda. Todos gostam dele, mas, mais que todos, os ferroviários. Tenho andado nesses trens paulistas, nessas ferrovias, em cada vagão, os ferroviários perguntam:

— Como vai Mario Scott?

Sorriem e completam:

— Um abraço para ele. Diga-lhe que nós estamos firmes.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

A COPA APÓS-POLÍTICA

Aos comentaristas de futebol escapa o mais óbvio dos fatores que influem no placar de um jogo: a sorte. E nisso, o futebol difere da imensa maioria dos esportes, onde preparação, treino, técnica e planejamento conduzem quase obrigatoriamente à vitória. No passado, havia gritantes diferenças entre países e suas respectivas culturas futebolísticas. Hoje não mais, com o advento da globalização, doses cavalares destes elementos - preparação, etc - diminuem as chances do imponderável ao limite das margens de erro das pesquisas eleitorais. Só que, num cenário ideal, imaginemos que todos os times e seleções se preparem adequadamente, treinem com afinco, dominem as técnicas, se planejem com inteligência e em níveis equivalentes. O que irá determinar o resultado das partidas? Novamente ela, a sorte.

***

E numa eleição, a sorte é fator preponderante? Ao contrário do esporte, onde a tendência é ganhar o melhor, numa eleição sem fraudes ganha a maior torcida. Mas assim como no futebol, os comentaristas têm o condão de manipular a opinião das massas sobre esse ou aquele jogador. Há ainda os comentaristas de arbitragem, que vem à telinha explicar, conforme lhes convém, aspectos jurídicos dos atos durante a campanha eleitoral. A sorte, nesse caso, é saber quem vestirá a camisa do clube mais popular no dia 3 de outubro. E a sorte da torcida é que essa farda não seja colocada à força no seu corpo.

***

Queria saber agora dos profetas qual a influência da Copa na eleição? Se a organização correu às mil maravilhas, o governo sai fortalecido? Se a seleção teve uma campanha desastrosa, o governo cai? Já havíamos demonstrado que, a partir do momento em que as eleições passaram a coincidir com o ano de Copa do Mundo, não há qualquer paralelo que possa se traçar. Parece que a imprensa concorda, pois publica a mesma pesquisa das últimas três eleições para o mês de junho, sem dar a mínima para o resultado da copa.

***

E por falar em imprensa, questões aleatórias:
A imprensa que torceu para o desastre na Copa perdeu credibilidade?
A imprensa que anunciou o caos na véspera da Copa perdeu credibilidade?
A imprensa que louvava a seleção como única certeza perdeu credibilidade?
A imprensa que publica a mesma pesquisa a quatro eleições perdeu credibilidade?
A imprensa que tenta esconder um aeroporto debaixo do tapete perdeu credibilidade?
Só perguntas desinteressadas.

***

Para finalizar, uma lembrança da juventude. Um amigo tinha o péssimo hábito de se queixar de tudo. Vira e mexe, nossos assuntos descambavam para suas lamúrias. Um belo dia, no fundo do poço, engoliu seu orgulho e ouviu alguns conselhos deste que escreve. Tempos depois, fui à sua casa e me surpreendi com o que vi: no seu quarto, paredes exibiam cartazes com os dizeres "Pára de reclamar e age!". Assim mesmo, no imperativo. Hoje, podemos dizer sem medo de errar, que se trata de um profissional de sucesso e tem uma família estruturada e feliz. Para não perder o costume, hoje seu único lamento é com tudo que os políticos poderiam ter sido e não são.


***

P.S.: Em 21 de junho, fiz uma postagem que continha uma promessa em seu sexto item. Sem o menor ânimo, e com bastante atraso, me sói cumpri-la: 11 dos 32 países que participaram da Copa do Mundo são incapazes de gerar tanta energia solar quanto os 2.5 MW, que o Estádio Nacional Mané Garrincha, produz, segundo o relatório "Pobres Povos Energy Outlook" (PPEO) publicado pela ONG britânica Practical Action. O relatório destaca que Bósnia-Herzegovina, Croácia, Camarões, Colômbia, Costa Rica, Equador, Honduras, Irã, Costa do Marfim, Uruguai e Gana, produzem o mesmo ou menos do que 2,5 MW de energia solar. Somados os 12 estádios utilizados no mundial, o Brasil produzirá com eles 5,4 MW de energia solar, de baixo impacto ambiental e custo reduzido.

domingo, 13 de julho de 2014

LOSER, MANOS!

O título ficou em boas mãos. Torci contra a Alemanha contra Gana, contra a Argélia, contra o Brasil, contra a Argentina. Mas para saber ganhar, é preciso saber perder. Sem entrar nas considerações de preparação, organização, supremacia ariana e demais cretinices do gênero, o fato é que eles jogaram o melhor futebol. O melhor goleiro, o melhor meio-campo, o maior artilheiro das copas, e o melhor conjunto. Passaram alguns sufocos, é verdade, mas montaram uma seleção excelente - dentro e fora de campo.

A Argentina caiu de pé. O título do post nem é uma provocação apropriada, visto que estava torcendo por nosso continente manter a escrita de jamais um europeu ganhar uma Copa em solo americano. Seu craque catalão repetiu a sina de não criar empatia pelo entorno. Messi é a antítese do que convencionamos imaginar o jogador argentino. A partida se conduzia como uma batalha, uma guerra campal, os demais atletas se desdobrando, superando sua nítida inferioridade técnica com abenegação, e ele alheio a tudo, olhando num misto de espanto e indiferença, para cima. Não deu. Para os argentinos em geral, ainda que recuperem parte do orgulho infinito, fica a sensação de que estavam a dois passos do paraíso. Para Messi, a impressão é que ele perdeu uma partida de vídeo game.

Sobre o jogo de sábado, a laranja espremeu um pouco mais do bagaço que aquele time se tornou. Acho covarde o calendário que já marca uma carrada de jogos para esse ano. Mais uma "contribuição" nefasta da entidade que comanda a seleção, sempre pronta a sugar seu produto de forma inconsequente. Nem que de seis minutos em seis minutos catastróficos se dilapide o patrimônio brasileiro construído pelo talento de Leônidas, Zizinho, Garrincha, Pelé, Rivellino e outros tantos, que teimaram em mostrar ao mundo mais do que o complexo de vira-latas poderia sugerir. É preciso tempo, qualquer que seja a definição, para pensar sobre o que queremos ser no futebol mundial. Um fantasma do passado, escoltado em uma história estupenda, como o Uruguai, ou um "player" do futebol, como já somos na economia.

E a vida segue. Será interessante a condução de debate político que se desenvolverá no rescaldo na Copa. Os profetas do fracasso foram derrotados impiedosamente. Nunca havia ficado tão explícito, meses antes da eleição, o papel partidário jogado pela imprensa. E sua derrota foi tão avassaladora que nem as sucessivas mudanças de rumo no discurso os salvaram. Há problemas, é fato, inclusive no famigerado legado, mas perto do bombardeio a que o país foi submetido só é possível ver o sucesso. Aos 13 de julho de 2014, 30 dias e 64 jogos depois, 171 gols e espetáculos épicos, jogados nos melhores estádios do planeta, há alemães extasiados em vários pontos do Brasil, o portão de Brandemburgo explode em alegria e a festa não tem hora para terminar, mas a Copa das Copas já não existe mais.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

ADEUS, MAGNÍFICA E CRUEL COPA DAS COPAS!

Saudações aos que têm coragem!

Ainda em frangalhos, não tenho estrutura para comentar a alegria dos que vibraram com o fracasso do nosso time de futebol. A cada dia aceito melhor uma concepção espiritual da vida que diz que somos mais que irmãos; somos parte de uma imaterial inteligência que age movida por leis universais e busca objetivos insondáveis, mas que se explicam em três singelas palavras: Deus é Amor. Não sinto raiva dos alemães, que levaram ao extremo a máxima de que respeitar o adversário é praticar o melhor futebol possível. Mas o que dizer das capas dos jornais? Na falta de palavras, fico com as do Miguel do Rosário. Nenhum esforço para levantar o astral do povo, como se quisessem se vingar da alegria que sentimos: "Vocês vão pagar pela esperança que tiveram na seleção. Vão pagar por essa alegria criminosa que alimentaram".

Como se vê, além da tristeza pela derrota, uma brutal contradição metafísica se escancara à minha frente.

Restam apenas dois jogos para o final da Copa das Copas. Os jogos da fase final tiveram menos dinâmica e plasticidade que os da primeira fase. Em compensação, aumentaram até o limite do impossível a dramaticidade. Decisões por pênaltis, por exemplo, são tão injustas quando decidir o classificado, ou o campeão, num par ou ímpar. Mas em termos de emoção, que diferença! Já não importam mais o público ou a média de gols, dois dados que vínhamos acompanhando para justificar o êxito do torneio também dentro das quatro linhas. A Copa é o mais retumbante sucesso do Brasil perante o mundo. É o evento que marca nossa definitiva inserção entre os países mais respeitados do planeta. Mas cujo futebol terá que passar obrigatoriamente por um processo que o faça retornar ao posto que já ocupou.

Dando meu palpite nessa seara, assino embaixo a coluna de Bob Fernandes, sobre qual seria o primeiro passo: a renúncia de toda cúpula da CBF, que só está lá se refestelando de privilégios porque são sucessores indicados por ninguém menos que Ricardo Teixeira e João Havelange. Ouço dizerem que a seleção é da CBF. Trata-se de apropriação indébita: a seleção é brasileira, se apropria do nosso hino, nossas cores, nossos cidadãos. É como meu time do coração, o Santos F.C.: discordo das imensas cagadas da diretoria, das burradas dos técnicos, das contratações estapafúrdias, do que os pernas de pau fazem em campo. Mas continuo torcendo, e esse quê de irracionalidade é parte essencial do futebol.

Mas após defenestrar os cartolas, expulsar a Globo do comando econômico de campeonatos paupérrimos, o que colocar no lugar? A primeira lição, com toda humildade, deve ser apreendida aos algozes. A Alemanha é a referência a que devemos seguir e dar os primeiros passos para ressuscitar o futebol brasileiro.

Participaram de três finais - 82, 86 e 90, onde se sagraram tri-campeões (os títulos anteriores foram em 54 e 74). Em 94, com um geração envelhecida, porém orgulhosa de seu passado recente, naufragaram nas quartas de final, diante da questionável Bulgária. Em 98, ainda mais velhos e prepotentes, caíram na mesma fase, desta feita diante da surpreendente Croácia. A luz amarela foi ligada, mas o alerta máximo aconteceu na Eurocopa 2000 quando o mesmo time ficou ainda na fase grupos.

O orgulho alemão estava ferido de morte, mas ele reagiram à sua maneira: com trabalho. Os times foram obrigados a manterem centros de excelência para formação de atletas. O Estado interviu, gastando em 12 anos algo como US$ 1 bilhão na construção de academias e centros de treinamento para jovens. A "CBF" deles não é uma entidade privada como a nossa, e a FIFA jamais levantou um dedo contra a "ingerência" governamental no esporte. O campeonato nacional foi reformulado, com a exigência de que cada time tenha a maioria de jogadores alemães, que hajam pelos menos um número "x" de atletas com menos de 23 anos, "y" de 20 anos, além de manterem severa austeridade econômica. Com isso, o campeonato é nivelado (por cima) e o público médio é o maior do mundo. A "safra" de atletas é excelente, e as perspectivas são desanimadoras - para os adversários, lógico.

A Argentina também tentou salvar seu futebol. Tirou a transmissão do grupo Clarín, que mantinha os clubes escravos do adiantamento dos direitos de imagem, e a repassou para os canais públicos. As categorias de base recebem atenção especial, inclusive de ex-jogadores brasileiros, mas sofrem com uma chaga comum no continente: a figura do empresário de atletas, que vampiriza as promessas, e lucra com eventuais transferências. Messi, por exemplo, saiu do país aos 14 anos! Sem querer ofender, é mais espanhol (catalão, para ser mais preciso) que argentino.

Palpites para o fim de semana

A razão diz Alemanha; a emoção, Argentina. O trabalho em equipe é alemão; o talento individual, argentino. O planejamento é germânico; a genialidade, portenha. A simpatia é européia; a paixão é sudaca. Melhor ataque, tedesco; melhor defesa, pampeira. Enfim, o corpo explica por A+B que dá Alemanha, mas a alma insinua que dá Argentina.

Quanto ao 3.º lugar, é um jogo psicológico. Diz respeito a quem consegue melhor se recompor das frustrações da rodada anterior. As expectativas brasileiras eram imensas, do tamanho do país sede, e da tensão provocada pelo clima de instabilidade que víamos e líamos na imprensa. Mas as holandesas não eram menores: uma geração toda, inclusive o técnico, sabiam que era sua última chance. Vêm de dois 0x0 e decisões por pênaltis. Nesse encontro não há dúvida: Brasil de corpo e alma, pela honra e pela pátria.

terça-feira, 8 de julho de 2014

SEM ÂNIMO PARA UM TÍTULO

O Brasil venceu a Alemanha por um conjunto de fatores, estritamente esportivos: desde nossos últimos fiascos em eventos desta magnitude, reformulamos nosso futebol, trocamos os cartolas viciados e matreiros por quem conhece do riscado e é bem intencionado. Fortalecemos nosso "mercado interno": os jogadores não saem mais do Brasil para tentar a sorte em ouros centros esportivos, a não ser depois de terem consolidado suas carreiras. Nossos meninos jogam bola com alegria e com uma sólida estrutura, patrocinada pelo Estado e supervisionada por quem é do ramo. As promissoras gerações do porvir são alvissareiras. Em concepção de esporte, abandonamos a tradicional carranca, o pragmatismo, a vitória a qualquer preço e passamos a sorrir a jogar um futebol que combina beleza e competitividade, basta ver a graciosidade que nosso campeonato nacional estampa. Refutamos a interferência da emissora que mandava no nosso futebol e a divisão financeira dos direitos de imagem é quase equânime, resguardando um pequeno percentual para premiar o mérito.

Só que não.

***

Em 1950, na final da Copa do Mundo, quando o Brasil fez 1x0 no Uruguai, logo no primeiro minuto do segundo tempo, o estádio quase veio abaixo. O capitão uruguaio interpelou o árbitro, alegando impedimento. O juiz, inglês, solicitou intérprete. O impasse estava criado. Depois de longas ponderações, e a expectativa brasileira sobre a validade ou não do gol, o jogo recomeçou. Essa pausa foi o suficiente para o Uruguai recolocar os nervos no lugar, reequilibrar sua equipe, cada atleta voltar ao foco de suas posições e seus objetivos. Aos 21' aconteceu o empate e aos 36' a virada.

Sim, nunca mais se jogará uma partida como o Maracanazo, nem existem homens como Obdulio Varela.

***

Quem tentou capitalizar sobre uma vitória alheia?
O Brasil ganhou a Copa. Tudo funcionou como nunca antes: tanto é que lema "Copa das Copas", para desgraça da oposição, pegou. Oposição que tentou realizar uma Copa e foi preterida pela África do Sul. Os aeroportos funcionaram. O transporte até as arenas idem. Os estádios foram perfeitos. Essa realização lavou a alma do autentico patriota, aquele que foi oprimido pelos sabujos que vociferam a fracasso a priori de tudo que nos metêssemos a fazer.

A CBF, o "Brasil que dá certo", segundo o Parreira, não só perdeu como foi humilhado. Uma estrutura arcaica, formada por filhotes da ditadura em todos os seus escalões, um antro de negociatas, uma mamatas fornida por mais de uma dúzia de patrocinadores ansiosos em se associar à paixão brasileira vinha aos trancos e barrancos, alimentada por um amor popular jamais igualado em qualquer esporte, se camuflando atrás dos atletas, que suavam sangue em campo. Mas até no futebol é preciso técnica, sabedoria, planejamento. O choque de realidade magoou milhões de torcedores. Resta saber o que fazer com Marin et caterva.

***

Não se perde de 7x1 impunemente. Meu estimado Santos F.C. ainda não recolheu os cacos do massacre que sofreu diante do Barcelona (o primeiro; o segundo foi consequência). Muita gente boa vai falar muita merda. Quem começou foi o sempre combativo Paulo Henrique Amorim, que parece ainda estar no momento de tilt que assolou nosso time no primeiro tempo. Sim, a Globo foi derrotada de forma acachapante, mas ir na onda de Wanderley Luxemburgo? O Kid Madureira? Ele é do esquema que se regala das estruturas carcomidas do nosso futebol. Ele agencia jogadores e é técnico (e comentarista) ao mesmo tempo, como um cidadão obeso apertado no terno global. São igual até nas inúmeras possibilidades de imitação que oferecem.

Emular a força de caráter da alma brasileira através do futebol, como quis Nélson Rodrigues 60 anos atrás, é algo que pressupõe uma série de valores. Por exemplo, a formação dos futuros jogadores: não há peladas nas ruas, não há campinhos nos bairros, não há bolas de meia. Logo, não há criatividade, não há liberdade, não há habilidade. Tudo isso foi terceirizado, está sob o tacão de interesses econômicos por vezes insuportáveis. Para cada Neymar, quantos Jean Chera ficaram pelo meio do caminho? Aí, temos que botar na seleção, gente que nunca jogou no Brasil - David Luiz, Marcelo, Luís Gustavo, Hulk, para ficar nos titulares.

Na escalação abaixo, vivíamos num país violentado por seu governo, mas a alegria que o futebol proporcionava era o único elemento capaz de agregar todos os corações: "Parece que todo Brasil deu a mão". A Dilma exemplificou isso. E todos jogavam por aqui:



E a noção que essas pessoas têm do que representam? Na imensa maioria são alienados por uma cultura de ostentação da riqueza financeira e da pobreza intelectual. Suas "opiniões" advêm do que recebem de seus assessores de imprensa. Ou seja, do PIG.

A partir de hoje, eu tenho um comentarista favorito: chama-se Edmundo, é brasileiro, e não tem vergonha de chorar diante da tristeza que acontecia sob seus olhos.

A vida segue. Mas cada dia mais triste.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

O G8 DO FUTEBOL MUNDIAL

Público: nos oito jogos das oitavas de final tivemos a presença de 457.004 torcedores, com uma taxa de ocupação dos assentos de 98,68%. Agora, somados os 56 jogos, já chegamos a 2.911.381 espectadores, com uma média de 51.989 por jogo. E a tendência é aumentar, porque os jogos finais acontecem nas maiores arenas. Será a 2.ª Copa com maior média de público da história, com o limite óbvio no tamanho dos estádios.

Saudades: com pesar, lembro que já está acabando. faltam apenas oito jogos para o fim do torneio. O que faremos depois? Tenho a impressão que o Brasil não será mais o mesmo, independente dos resultados dentro de campo. Poderemos incorporar o exemplo japonês, de recolher a sujeita após o espetáculo. Ou um passo mais simples: aprender a reconhecer os erros.



Gols: já é o terceiro mundial com mais rede balançando. Foram marcados 154 tentos, atrás apenas de Japão/Coreia (2002), com 161 e França (1998), com 171, em números absolutos. A média caiu drasticamente nos jogos eliminatórios. Mesmo assim, são 2,75 gols por partida, o que desde o México em 1970, só foi superado uma vez (na Espanha, em 82, 2,81 de média). Tanto nos números absolutos quanto relativos, dizem as más línguas que a culpa é justamente da seleção canarinho: em 1982 fizemos 15 gols e tomamos 6, em 5 jogos (média de 4,2 gols por partida); em 1998 fizemos 14 e tomamos 10, em 7 jogos (média de 3,43). E em 2002, foram 18 gols pró e 4 contra (média de 3,14), em 7 jogos. Nessa copa, fizemos 8 e tomamos 3 em 4 apresentações, reduzindo a média das partidas que participamos para 2,75.

Equipe brasileira: vou na contramão dos derrotistas que, diante do sucesso mundial do evento, redirecionaram suas pragas para o time de futebol. O jogo contra o Chile teve um momento de tensão, a dita bola vadia, no chute de Pinilla. Além dos pênaltis, onde o fator emocional é decisivo, e vimos atletas com nervos em frangalhos, sentido o peso de jogar em casa. Fora isso, digo que o Brasil jogou melhor o primeiro tempo, tomou o gol num vacilo numa cobrança de lateral, e que no segundo tempo, o Chile neutralizou o Brasil apostando numa tática suicida, pois marcou a saída de bola dos nossos zagueiros. Ninguém marca o campo inteiro impunemente, ainda mais com jogadores sabidamente baleados (Vidal e Medel). Na prorrogação, o que vi foi o Chile se arrastando em campo, pedindo aos céus que o jogo acabasse e o Brasil atacando de forma desordenada. As lições desse jogo foram muitas, principalmente em termos de controle mental.

Seleção Colombiana: devemos eterna gratidão a James Rodriguez e los cafeteros, por terem expurgado o fantasma do Maracanazo. Tão pilhados estamos, que seria insuportável jogar contra os uruguaios, aqueles caem que em campo após uma joelhada na têmpora, com suspeita de traumatismo craniano, e voltam a jogar três minutos depois, a despeito do veto médico! Ou mordem os adversários, nos momentos críticos. Contra a Colômbia, a carga dramática é infinitamente menor. Além disso, o estilo de jogo se "encaixa" com mais naturalidade. De todas as virtudes que se viu na Colômbia, ninguém mencionou a marcação. Ou seja, jogam e deixam jogar, o que deve nos deixar otimistas.

Alemanha vs. França: les bleus, assim como a Colômbia, têm tornado fáceis as vitórias. Não quero tirar seus méritos, mas foram beneficiados pela arbitragem na partida contra a Nigéria: após anular um gol dos africanos, o juiz não marcou um pênalti clamoroso de Evra, ainda no primeiro tempo. Já no segundo tempo, com o placar ainda 0x0, Matuidi fez uma falta criminosa, que quase aleijou o nigeriano, e recebeu apenas cartão amarelo. Por outro lado, a Alemanha parece seguir o caminho oposto, complicando jogos, em tese, tranquilos. Nunca imaginei dizer isso, mas falta objetividade ao time alemão. Noves fora a goleada em Portugal, que jogou com um a menos, a equipe tem oscilado bastante de produção. Esteve perdendo de Gana, sofreu contra os EUA e só superou a valente Argélia na prorrogação - e no sufoco. Mesmo com esse cenário, penso que a camisa alemã pesa bem mais na decisão.

Holanda vs. Costa Rica: ou antipáticos vs. simpáticos. A Costa Rica já fez história e mostrou muito mais que sorte: um excelente goleiro, um sólido sistema defensivo (que só tomou o gol grego por ter tido um zagueiro expulso), um toque de categoria no meio-campo, com o capitão Brian Ruiz, e poder de finalização com o jovem e impetuoso Campbell. Se classificou em primeiro lugar num grupo com três ex-campeões mundiais. A Holanda vem, aos trancos e barrancos, mas com uma campanha irretocável, exceto pelo purgante que dirige a equipe do banco. Os homens da frente - Snijder, Van Persie e Robben - realmente decidem, mas sua defesa, toda vez que exigida, entregou a rapadura. Uma surpresa é o fôlego demonstrado, tanto em partidas jogadas às 13 horas, quanto nas três viradas que já aplicou. É a favorita, mas vai jogar com torcida contra em Salvador.

Argentina vs. Bélgica: los hermanos, a exemplo do Brasil, vêm expondo suas fraquezas já conhecidas por todos que acompanham o futebol. O goleirão questionado até que vai bem, mas não inspira confiança. O mesmo ocorre com a defesa. Do meio para frente, é só bola no Messi. Tirante o esforço de Di Maria, Mascherano é de uma nulidade absoluta (no Barcelona, a despeito do seu 1,70m, o escalam lá atrás, para não atrapalhar o resto da equipe). Os resultados têm sido sofridos como um tango, e as vitórias magras, por um gol de diferença. Por enquanto, para felicidade portenha, foi o suficiente. Já a Bélgica, les Diables Rouges, parece que engrenaram agora. Vinham cozinhado o galo, mostrando um futebol apático, aquém das expectativas. Mas esse último jogo foi eletrizante. Suado, árduo e divertido, o recorde de finalizações. Vejo seu meio-campo black power, com Witsel e Fellaini, atropelando os frágeis volantes argentinos. Ainda assim, darei meu voto de confiança a Messi, que pode decidir tudo num lampejo de genialidade.
Porre: tem sido um saco desafiar nas rodas de conversa sobre futebol e política, a mancha negativista que ficou impregnada no imaginário popular. O sucesso da copa é avassalador. Levou de roldão todos os que fincaram suas bandeirinhas do "não vai ter copa". Agora, a carga se volta contra nosso scratch. Não vivi tempos de equipe perfeita: em 1994, no ano do tetra, detestava Dunga e sua mediocridade, correndo como um anão de jardim atrás da bola. Mas o que me infartava era o Zinho, a enceradeira do time. Raí, a esperança de criatividade, estava numa péssima fase, tanto que foi parar na reserva. Em 2002, o indefectível esquema com três zagueiros, e a pobreza de talento num meio com Gilberto Silva e Kleberson. Nos dois casos, as falhas óbvias não impediram a torcida. Hoje, o PIG que reclama dos nordestinos que votam com o estômago, faz o mesmo cada vez que Daniel Alves erra um cruzamento. Que desdenha dos negros, associa Marcelo e seu "cabelo ruim" a uma série de falhas coletivas. Que exige talento, futebol arte, mas que espera com um punhal após o primeiro fracasso. Que inveja Neymar e cobra dele o retorno de audiência que nunca mais terão. Que gostavam do Felipão saudoso da ditadura, mas que não terão pudores em aniquilar seu passado com uma improvável derrota.
Mas o pior mesmo é buscar argumentação racional para dialogar com gente assim, como Malu Cruz.