terça-feira, 28 de janeiro de 2014

OSTRACISMO

Nosso tribunal maior, cada vez mais esculachado por alguns de seus próprios membros, que além de não possuírem envergadura moral necessária ao cargo, a chamada conduta ilibada (que advém do latim illibatus, ou seja, puro, nunca tocado) que a muito ficou pelas cucuias, merece ser questionado também por causa do que preceitua o art. 101 da CF/88.

A pergunta vem à tona na resenha da declaração do papalvo que cada vez mais se deslumbra com os holofotes e renega todos os códigos que disciplinam as condutas dos magistrados. Disse que "pessoas condenadas por corrupção devem ficar no ostracismo. Faz parte da pena".

Será que o notável saber jurídico pode surgir numa mente tão rombuda em outras disciplinas? Sim, porque consideremos duas situações: o pacóvio conhece o significado do termo que usou; logo, demonstra uma brutal ignorância política e filosófica, ramos de estudo correlatos ao direito. Porém, se fala sobre o que não domina, só reforça sua incalculável empáfia com a caricata postura de néscio.

Um pouco de conhecimento, para nos refrescar da tormenta de estupidez que assola o país.

Quem instituiu o ostracismo, como uma medida permanente contra os pretendentes à tirania, foi Clístenes. A cada ano, a assembleia votava se haveria ou não um ostracismo; se assim decidido, os cidadãos se reuniam na ágora e carregavam cacos de cerâmica (óstraka) com o nome de um político que desaprovassem ou temessem.

Para haver uma condenação, eram necessários no mínimo 6.000 (seis mil) cacos nas urnas; esta era a única ocasião em que os votos dos cidadãos eram formalmente contados. O homem que recebesse mais votos era devidamente punido com uma pena de exílio de 10 anos, embora não perdessem seus direitos de cidadão.

É sabido que o conceito de cidadão era bastante restritivo em Atenas. E também a participação nas assembleias não era nada espetacular (o julgamento de Sócrates, a título de exemplo, teve pouco mais de 500 cidadãos se manifestando). Ou seja, uma condenação dessa natureza só ocorria diante de imenso clamor. Agora, o toleirão que adora microfones querer comparar uma decisão dessas com uma sentença em único grau de jurisdição, cujo resultado se deu por maioria, num colegiado de 11 pessoas, é demais. E mesmo no ostracismo ateniense, o condenado não perdia seus direitos de cidadão, ou seja, mantinha o inalienável direito de se manifestar.

O ostracismo entrou em vigência em 487 a.C. contra o aristocrata Megaclés e outros antigos defensores da tirania e foi concebido como mais um entrave a esses elementos; assim, alguns óstraka sobreviventes trazem maldições contra uma possível vítima por apoiar os persas. O ostracismo, porém, podia ter um objetivo mais amplo na vida política ateniense. Vários anos antes, Periandro, tirano de Corinto, pedira o conselho de seu colega Trasíbulo de Mileto a cerca de como lidar com os descontentes; Trasíbulo simplesmente pôs-se a caminhar por um trigal, rompendo com o chicote os talos altos demais,  o que deixou confuso o mensageiro. Periandro, porém, compreendeu a mensagem, e os atenienses de origem nobre que se mostrassem ambiciosos demais podiam justamente temer o perigo de receber o ostracismo por ameaçarem “o consenso nacional, sobretudo por defender em público idéias ou atos que ameaçassem os valores da sociedade politica”.

Temístocles, militar que conduziu os gregos à vitória na batalha de Salamina, usou e abusou do instituto: passou a dirigir ataques contra seus próprios adversários, até obter em 482 a.C. o ostracismo de Aristides, famoso pela probidade. Logo, passou a ser o chefe indiscutível de Atenas quando teve de enfrentar o ataque das forças persas, por terra e mar, sob o rei Xerxes. Em 471 a.C., os oponentes de Temístocles, que, segundo as óstraka que nos chegaram, muitas vezes votaram contra ele no seu auge, dispunham de forças suficientes para tramar seu próprio ostracismo; nunca mais ele pode voltar a Atenas e morreu como hospede do rei da Pérsia.

Em algum momento dos anos 418/415 a.C. levaram a cabo o ostracismo do insignificante político Hipérbolo, uma farsa produzida quando os rivais Nícias e Alcibíades uniram forças; desde então o ostracismo nunca mais foi usado, até que 2.500 anos depois, um lacaio do poder tenta restabelecer a pena, deformando seu real significado.

Sugestões de leitura:

Os Gregos e a Democracia

por Voltaire Schilling

O Nascimento da Democracia Ateniense
por Chester G. Starr

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

domingo, 12 de janeiro de 2014

RIACE - CALÁBRIA - ITÁLIA

Se alguém tiver a curiosidade de digitar o nome "Riace", no google brasileiro, o primeiro resultado encontrado, antes mesmo da cidade, é referente aos "Bronzes de Riace", duas estátuas encontradas no Mar Jônico em 1972, datadas do séc. V a. C., sendo pelo menos uma delas atribuída a Fídias, considerado o maior escultor da Grécia Antiga.

Pudera, uma descoberta como essa é mais relevante que uma comuna de menos de 2.000 habitantes. Todavia, Riace conseguiu se tornar notícia novamente: na contramão do continente europeu, há mais de uma década trata com humanidade e acolhe os refugiados da África e da Ásia. A simbiose perfeita com os "homens vindos do mar", rechaçados e vistos como ameaça pelo resto da Europa, salvou o povoado da extinção.

A reportagem saiu na Deustche Welle, editoria francesa.
Link para reportagem: http://dw.de/p/1Agok

ALDEIA NA CALÁBRIA SOBREVIVE GRAÇAS A REFUGIADOS

O sol mal se levantou, e a equipe de lixeiros ecológico-tradicional já atravessa as ruas estreitas de Riace, na costa sul da Itália: dois homens e sua carroça puxada a jumento. Quebrando a tradição, contudo, só um deles é italiano.

Cerca de mil anos atrás, os ancestrais de Romano fundaram o lugarejo na Calábria – nas colinas, a cerca de oito quilômetros do mar, para se protegerem dos ataques dos piratas. O homem que acompanha Romano é um imigrante, Daniel. Ele é , como se diz aqui na região, um "homem do mar" – assim como eram chamados os piratas antigamente.

DUPLA SORTE PARA REFUGIADOS

Riace, cidade da hospitalidade
Para muitos italianos, gente como o auxiliar de lixeiro continua representando uma ameaça. Numa outra aldeia calabresa, houve choques entre os antigos moradores e os trabalhadores imigrados. Mas Riace é diferente: de seus menos de 1.700 habitantes, 300 são "gente do mar".

Na verdade, Daniel vem de Gana. Cinco anos atrás, ele desembarcou em Lampedusa, a ilha mais meridional da Itália. "Três dias e três noites nós ficamos num barco. Um risco tremendo, de que nós escapamos. Mas, o que se podia fazer? A gente tinha que vir. E se você sobrevive, sobreviveu."

O imigrante de 32 anos sabe que teve sorte de conseguir chegar vivo a Lampedusa. E mais sorte ainda que exista um lugar como Riace. Enquanto o resto da Europa se defende dos refugiados com cercas e polícia de fronteiras, esta localidade os acolhe, quer apoiá-los. E hoje Daniel vive com mulher e dois filhos na cidadezinha calabresa.

SALVA DO DESAPARECIMENTO

Esta região da Itália é pobre; aqui, quem manda é a Máfia. Os jovens abandonam a região assim que têm uma chance. O mesmo aconteceu em Riace: 15 anos atrás, sua população havia se reduzido de 3 mil para menos de 800. Porém, no início dos anos 2000, o prefeito Domenico Lucano passou a acolher imigrantes, os quais, segundo ele, substituíram todos os que abandonaram a cidade, evitando assim sua extinção.

"Antes, estes prédios estavam vazios e acabados", diz Lucano, apontando para as casas em redor. "Riace já era quase uma cidade fantasma. Mas nós construímos novamente as casas. Agora, famílias moram aí, e graças a elas pudemos manter a escola em funcionamento."

Também do ponto de vista econômico, os imigrantes são importantes, ressalta o prefeito: "Eles fazem os trabalhos que os italianos não querem mais fazer", cuidam dos idosos ou trabalham no olival para a sociedade de produtores de azeite. Um somali abriu um restaurante, outros atuam como tradutores ou mantêm pequenas lojas e firmas. Um deles, por exemplo, fabrica cerâmica tradicional de Riace, decorada com finas listras coloridas.

Malteses: rechaçados pela Europa
VANTAGEM PARA TODOS

Quem indaga os clientes mais idosos do café sobre a convivência com os imigrantes, não recebe resposta: eles apenas fazem um gesto de "deixa pra lá". Só um homem bem mais jovem, que não quer ser identificado se dispõe a conversar.

"É uma coisa excelente! Riace está cheia de gente outra vez. Antes, era tão vazio aqui." Também há mais empregos, comenta o rapaz, pois os moradores podem trabalhar para a organização que apoia os recém-chegados. "No entanto, os empregos deveriam ir primeiro para os cidadãos italianos. No momento, os imigrantes têm muito mais possibilidades do que nós", ressalva.

Para a afegã Marie, o trabalho numa oficina de trabalhos em vidro é um presente de Deus. "No Afeganistão, eu só ficava em casa e não podia fazer nada, assim como as outras mulheres." Mas ela deixou o país por outro motivo: seus três filhos.

"Minha mais velha, a Mariana, começou a ter problema com os talibãs. Eles queriam casá-la à força. Mas ela só tem 12 anos!" A afegã e sua família já estão há dez meses em Riace. No momento, ela trabalha no mosaico de um jóquei a cavalo, que vai ser vendido na loja ao lado. Ela recebe 500 euros por mês do município, além dos 200 euros do serviço de asilo.

Dinheiro Local: Gandhi e Che
O FATOR HUMANO

Essa ajuda financeira acaba revertendo também para a economia local, pois Marie, Daniel e os demais gastam seu dinheiro principalmente no comércio de Riace. Mas, como muitas vezes seu pagamento chega com atraso, Riace passou a imprimir seu próprio dinheiro, com retratos inspiradores de Martin Luther King, Che Guevara e Ghandi.

As cédulas funcionam como moeda normal: os requerentes de asilo podem comprar alimentos ou roupas com elas, e oportunamente os varejistas trocam seus Ghandis por euros de verdade.

Essa evolução positiva se deve, em grande parte, aos subsídios do governo italiano e da União Europeia. Mas ela também depende muito de gente como o prefeito Domenico Lucano. Nas últimas eleições, ele se candidatou com um slogan simples: "As pessoas mais pobres do mundo vão salvar Riace – e nós as salvaremos." Simples, mas eficaz.