sábado, 10 de setembro de 2011

O BANHEIRO E A POLÍTICA

Em 1988, à frente de uma equipe de tevê, fui ao leste europeu realizar documentário sobre a perestroika - reestruturação político-econômica sob a liderança do russo Mikhail Gorbatchev. Em Praga, numa fábrica de automóveis, nosso repórter pergunta ao líder dos operários se a perestroika chegou ali. Ele nos aponta os banheiros: "Nas nossas latrinas a perestroika não chegou".
Eram imundas. Mas por que me lembrei disso? Ah, sim, saiu pela Agir a 2ª reimpressão do Febeapá, Festival de Besteira que Assola o País, instaurado com o golpe de 1964, do Stanislaw Ponte Preta. Num artigo, o atilado jornalista transcreve um capítulo de Encanamentos e Salubridade das Habitações, do engenheiro português João Emílio dos Santos. É a versão lusitana do Febeapá. Ensina a instalar retretes coletivas "principalmente" em grandes empresas, para evitar que "mandriões incorrigíveis" ali fiquem "além do tempo indispensável" - retrete é latrina e mandrião é malandro em Portugal.
O desequilibrado, digo, o engenheiro acusa os operários de "aproveitar a ida à retrete amiudamente para abandonar o trabalho". Dá várias ideias: porta baixa, para se ver quem está lá; barras de ferro nas paredes "que correspondam aos sovacos", para a pessoa ficar pendurada e querer livrar-se logo do suplício; tampo inclinado; uma descarga periódica de vapor quente.
Mas, explica a cavalgadura, digo, o engenheiro, o melhor mesmo é manter as latrinas "num estado de imundície tal que o cheiro afugenta dali os operários logo após satisfazer suas necessidades".
Stanislaw publicou "sem comentários, mas comentemos. A melhor referência a essa insanidade de certos patrões, a preocupar-se com o tempo gasto pelos funcionários no banheiro, está em Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin. Carlitos é literalmente moído pelas engrenagens da máquina capitalista. E quando o chefe o libera para usar o banheiro e ele aproveita para fumar um cigarrinho, surge num telão o patrão mandando-o de volta ao trabalho.
O documentário sobre a perestroika também foi ilustrativo. Editamos em Praga, última escala da viagem. Para minha surpresa, aparece na véspera da partida um "jornalista" do Partido Comunista Tcheco. Queria ver o trabalho. E, adivinhe, implicou com a menção às nojentas latrinas. Disse-me através do intérprete:
"Não tem cabimento num documentário tão bem fundamentado falar em banheiro sujo".
Sob alusões de não nos deixar sair do país, tive que tirar a fala do líder operário. Mas o colega editor, Yeken Serri, tinha feito duas cópias. Enganamos o censor e trouxemos a versão completa. Que acabou inédita: a emissora que negociou o documentário recusou-se a pôr no ar alegando "questões técnicas".

Por que se negam a considerar a limpeza de banheiros coletivos ou públicos com um dos objetivos da política?
Mylton Severiano


Instalações sanitárias (retretes coletivas):

Do original:
Na instalação de retretes coletivas nos quartéis, escolas e, principalmente, nas grandes oficinas, é necessário adotar disposições especiais, por assim dizer: disciplinares, para evitar que o pessoal ali permaneça além do tempo indispensável. É de todos conhecido que os operários menos cuidadosos com os seu deveres, aproveitam a ida à retrete ameudadamente para abandonarem o trabalho. Recorre-se por isso a diversos meios que tornam incômoda a permanência nas retretes. As portas dos sanitários devem ser baixas, para que facilmente se veja de fora quem lá está. Usam-se muito as retretes turcas, onde as pessoas se teem de acocorar para delas se servirem, mas tem-se reconhecido que nao é bastante isso, por não ser a posição incômoda para todas as pessoas.

Também se costuma colocar nas retretes desse sistema uns descansos de ferro encastrados nas paredes e que correspondem aos sovacos e onde as pessoas ficam por assim dizer penduradas para fazer as necessidades. Ainda se tem usado o tampo das retretes bastante inclinadas, para que o pessoal não fique bem sentado, mas apenas encostados, numa posição bastante incômoda, mas todos esses dispositivos são ineficazes quando se trata de mandriões incorrigíveis. Recorre-se, igualmente, à ação da água ou do vapor. Periodicamente lança-se nas retretes uma violenta corrente, que as lava, arrastando os dejetos, mas dirigida de um modo que uma parte da água molhará as pessoas que ali estiverem sentadas ou acocoradas; mas exige esta disposição que se disponha de um volume considerável de água, o que nem sempre sucederá.

Empregando as retretes do sistema Doulton já descritas, pode usar-se com o mesmo fim a descarga de vapor das máquinas, feita na canalização; a temperatura do vapor é bastante para queimar ou, pelo menos, tornar insuportável a permanência nas retretes. Um meio preconizado por industriais para evitar a permanência do seu pessoal nas latrinas, é mantê-las num estado de imundice tal que o cheiro afugenta dalí os operários logo após satisfazer suas necessidades.


Fonte: livro "Encanamentos e Salubridade das Habitações", pág. 148-149, capítulo 5, 3a. edição, Lisboa, Portugal. Autoria do engenheiro português João Emilio dos Santos Segurado. Parte da coleção da Biblioteca de Instrução Profissional.

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