terça-feira, 17 de setembro de 2013

O PRÍNCIPE DA PRIVATARIA - PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Comecei a ler "O Príncipe da Privataria", de Palmério Dória. Sem delongas, gostaria de deixar registradas minhas primeiras impressões, no calor da leitura e no frescor da memória.

1. Estou na página 127, de um total de 368. Pouco mais de um terço.

2. Confesso uma pequena decepção. Minha expectativa era de um livro denúncia, lautamente recheado com provas e documentos, como "A Privataria Tucana", do Amaury Ribeiro Jr. Não se trata disso. Até onde estou, é quase uma biografia não autorizada de FHC, sua trajetória pessoal e política. Outrora denominado príncipe dos sociólogos, manteve o título de realeza, alterando somente o objeto de seu mandato.

3. Na realidade, o mérito do autor, Palmério Dória, é sistematizar e dar ordem cronológica a uma série de episódios de nossa recente história que são de domínio público, ainda que de maneira forçada sejam omitidos na grande imprensa. O próprio escritor participou, à época, de várias das reportagens e entrevistas mencionadas no livro. Como disse o poeta espanhol George Santayana, "Aqueles que não podem lembrar o passado, estão condenados a repeti-lo". Ou ainda Marx: "A história acontece como tragédia e se repete como farsa".

4. Depois de um empolgante testemunho do dono da editora, sobre as prováveis (certeiras) implicações jurídicas da publicação desta obra, que expõe as vísceras tucanas, o autor relembra a fofoca do filho de FHC fora do casamento. É bom frisar a data: 1991. Lula havia perdido a eleição dois anos antes justamente por causa da denúncia forjada pela campanha de Collor acerca de sua filha, Lurian, que nem era bastarda, nem era de fora do casamento, pois havia nascido no período entre a morte de sua primeira esposa e o segundo casamento, com Marisa.

5. Segundo Dória, o filho de FHC com uma jornalista da rede globo era o típico "segredo de polichinelo", daqueles que todos sabem nos corredores de Brasília, e foi ocultado pelo PIG até a morte de Ruth Cardoso, ex-mulher de FHC. Lula não usou esse argumento na campanha eleitoral de 1994. Nem em 1998.

6. Para FHC, acerca do Caixa Dois, o que caracteriza seu grupo é que "nós gastamos o dinheiro nas campanhas, enquanto eles enfiam uma boa parte em seus próprios bolsos" (pág. 10). Raciocínio firmemente contestado por José Eduardo Andrade Vieira, ex-proprietário do Banco Bamerindus e financiador da campanha de 1994 (capítulos 8 e 9). Já Lula poderia dizer que, entre as inúmeras e abissais diferenças entre o seu jeito de fazer política e o de FHC, está o fato de que não explora os dramas pessoais alheios para obter vantagem eleitoral.

7. Aliás, resta claro que Lula foi roubado três vezes antes de vencer a eleição presidencial de 2002. Em 89, citamos a denúncia sobre Lurian (a mãe da menina, Miriam Cordeiro, aparecia no horário eleitoral de Collor dizendo que Lula teria forçado-a ao aborto, mas ela resistiu). Hoje, Collor se envergonha do episódio, mas o fato é que ele foi levado a público na véspera da votação do 2.º turno, não dando sequer tempo para esclarecimento da situação. Também houve o sequestro do empresário Abílio Diniz, onde os criminosos, uma vez presos, teriam sido flagrados com material de campanha do PT, o que só foi desmentido após a votação. E a pior de todas, a edição do debate final, feita pela rede globo, com favorecimento explícito a Collor, exibindo seus melhores momentos e os piores do Lula. A farsa já foi assumida tanto por Armando Nogueira quanto por Boni, dois cardeais do Cosme Velho.




8. Em 1994, o plano Real foi o estelionato eleitoral. FHC, pintado em cores fortes como o "pai do Real", havia se desincompatibilizado do cargo em abril. O Real entra em cena em julho. Mesmo assim, as primeiras cédulas saíram com a assinatura de FHC, como Ministro da Fazenda. Uma pesquisa citada no livro nos dá conta que no meio do ano, Lula tinha 42% das intenções de voto contra 8% de FHC. (pág. 52).  No final do ano FHC foi eleito com 54% dos votos, contra 27% do petista. E após FHC ultrapassar Lula não houve mais debates na TV com a participação do tucano. Nem mesmo no pleito seguinte, em 1998. Somente em 2002 se retomou o hábito do candidato líder nas pesquisas debater propostas com seus adversários. Com Lula. E Palmério Dória nos refresca ainda mais a memória mostrando como tucanos aparelham a máquina administrativa para ganhar eleições: nas págs. 60 e 61, é mostrada uma reportagem baseada num documento "confidencial" da SAE - Secretaria de Assuntos Estratégicos, vazado para o Estadão, que mistura a paranoia anticomunista da ditadura com o medo do Lula e afirma que os sem-terra, fortemente armados, treinavam uma guerrilha na região do bico do Papagaio, como o PCdoB já havia feito em 1966. A matéria feriu gravamente a candidatura lulista, pois o PT se confundia com o MST.

9. Em 1998, parte que ainda estou lendo, há a pior de todas as falcatruas tucanas: a compra da emenda da reeleição. Mais detalhes no livro, ou quando eu concluir a leitura. O irônico é que se empenharam tanto nos subornos para garantir a reeleição casuística depois de votarem contra encaixá-la na Constituição de 1988, por receio de Lula inciar uma série de mandatos, e acabaram por desperdiçá-la em apenas oito anos. Hoje, depois dos dois mandatos de Lula e a caminho do segundo de Dilma, os tucanos se misturam aos black blocs e anonymous para pugnarem o fim do instituto da reeleição.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

FÁBULA DA BUROCRACIA CLASSISTA

Parte I

Mefibosete chegou à maioridade em 1994, ano que viu o milagre do plano real. Para ele, pouca diferença: antes, não podia comprar nada além de CR$ 2.750,00, e jamais conheceu a cédula da baiana. Depois, seu parco limite se tornou o R$ 1,00 - e também demorou bem uns dez anos para fisgar com as próprias mãos sua primeira garoupa.

Ao cabo do fatídico ano, além da eleição de FHC, houve a aprovação no vestibular. Oriundo do ensino médio público (e técnico), a afinidade com o desenho o conduziu à Arquitetura e Urbanismo. Só teve um que se arrependeu mais desta escolha que o próprio Mefibosete: o reitor da Universidade (católica), que não viu a cor do dinheiro durante os três semestres em que insistiu no erro de mantê-lo estudando.

Desde que o mundo é mundo, o curso de Arquitetura e Urbanismo é elitista. Seus amigos, os párias do curso, não enquadravam em nenhuma das tribos. Discutiam como ganhar dinheiro após formados; discussão que, repetida inúmeras vezes, nunca chegou a lugar nenhum. Não havia empregos. Nem oportunidades. Nem sonhos

Até que, num rompante de obstinação, largou a faculdade. Foi trabalhar, voltou a estudar, ler, criou sua própria disciplina. Correu como Ahasverus, o judeu errante, e como vivia a "idade de ouro da meritocracia", iniciava 1997 como docente da egrégia e vetusta centenária Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás.

Lá, as conversas sobre o futuro profissional eram diferentes: primeiro, os filhos das tradicionais famílias jurídicas, que continuariam o negócio de seus ancestrais; depois, desde a aula inaugural já haviam cambalacheiros, de olho em brechas nebulosas da advocacia; por fim, os que alentavam o ideal burguês, a ascensão social, vislumbravam uma chance nos concursos públicos.

Naqueles idos, não havia lugar para todos, a globalização e o presidente ditavam, e a única alternativa de prover a subsistência era o concurso, justamente para exercer funções que haviam sido hostilizadas pela mídia perante a sociedade: o funcionário público era o vilão do país.

E Mefibosete já não era mais aquele aluno diligente: além do fastio com a verborragia hipócrita do direito, outros interesses cruzaram seu caminho. Enamorou-se pelo movimento estudantil e lá foi disputar CA e DCE. Quando o flerte encerrou-se, as mais promissoras carreiras jurídicas estavam à léguas de distância e lhe restou um certame de nível médio, donde ingressou no emprego de onde tira o sustento de sua família até o presente momento.

Desde 2001 ocupou vários cargos, sempre de natureza técnica, se envolveu e se afastou do movimento sindical. Hoje, no escalão intermediário, é um gestor mais preocupado com a qualidade de vida de sua equipe do que com resultados numéricos. Nunca tirou vantagem de sua história política, exceto a experiência adquirida. Agrada uns e desagrada outros. Ri, chora, se emociona, ama e odeia. Mas isso não importa: sua vida se conduziu por essa linha graças às interferências econômicas.

Parte II

Filóstrego nasceu numa corrutela que só aparece no maior zoom do Google Maps, em Minas Gerais. Pai da roça, mãe também, ocupam o mesmo pedaço de chão desde a partilha de Adão, um lugar esquecido pela modernidade. Não se lembra de como era a vida antes do real, nem no que implica a inflação.

Ainda assim, o jovem sonhava com o mundo. Queria ser jogador de futebol, largar a miséria e o atraso, como tantos outros fizeram. A TV, aliás o único canal que chegava naquele grotão, deu exemplo inúmeras vezes a Filóstrego, que se empenhava como um faminto atrás de um prato de comida, em cada pelada nas vizinhanças.

Aos 16 anos, percebeu que apesar de muito bom de bola, o destino não lhe abriria essa porta. Desacorçoado, foi chorar nos ombros das moças faceiras, que ficavam na praça do lugarejo, após a missa de domingo. Sem grana, sem emprego, mas havia mil garotas afim.

Uma dessas se tornou sua futura esposa. Durona, mandona, uns bons anos mais velha que ele, lhe ajudou a tomar prumo na vida. Até porque aos 18, Filóstrego já era papai.

Foram para uma cidade próxima, logicamente maior, onde iniciou seu curso superior em Ciências Contábeis, numa faculdade de araque. Não tomou conhecimento: determinado que só, foi o melhor aluno do curso, desde sua fundação, na década anterior. Ganhou convite para trabalhar num grande banco privado e uma bolsa para pós graduação.

Estávamos em 2006. Aos 24 anos, sua vida definitivamente deixava para trás a miséria e o atraso.

Tudo corria às mil maravilhas, o segundo filho veio, e ano passado, depois de suportar a pressão do trabalho no banco por seis anos, Filóstrego optou por retomar os estudos e concorrer a um cargo público. Logo de cara, no primeiro, foi aprovado. Teve que se deslocar uns quilômetros, até Goiás, e recomeçar como "soldado raso". 

Mas o ganho em bem estar compensou as mudanças. Adora jogar seu futebol, apesar do joelho não ser mais o mesmo. É um super pai e marido dedicado. Crítico do governo do PT até a medula. Se bem que nada disso é relevante, pois também chegou até aqui por força das circunstâncias econômicas.


Parte III

Berchiolina levava uma vida de conto de fadas. Viveu o suficiente para comprar balas e chicletes nas moedas anteriores ao Real, mas não se lembra com exatidão da época. Ingênua e pueril, se casou com o primeiro namorado, a quem conheceu aos 15 anos, em 1993. Tudo certinho, bucólico, sua vida era onde a realidade mais se aproximava da Pollyanna.

Durante um bom tempo, tiveram o privilégio de brincar de casinha, diversão patrocinada por pais amorosos e sogros compreensivos. Seu amor ia trabalhar de bicicleta enquanto ela arrumava os mimos da casa com todo esmero. Logo, estava caprichosamente vestida, esperando-o no portão e suspirando de saudades...

O relacionamento amadureceu e as aspirações cresceram. Com filhos, a folga foi dando lugar ao aperto, e Berchiolina não teve dúvidas: estudada que era, para satisfação do pai coruja, arregaçou as mangas e foi trabalhar fora.

Se tornou professora, de português, no ensino fundamental e médio. Adorada pela maioria dos estudantes, era ao mesmo tempo suave e rígida, doce e exigente. Transpirava as melhores intenções, e era vista como uma mãezona, ou como aquela irmã  mais velha que toda adolescente gostaria de ter.

Nunca se aprofundou em política, mas seu agudo senso de justiça deixava claro o que era certo e o que era errado. Com essa intuição, repugnou a corrupção denunciada na imprensa livre, que varreu o país do Mensalão para cá.

Porém, mais e mais necessidades surgiram, e os vencimentos do magistério já não davam conta das demandas. Incentivada pelo marido, Berchiolina se preparou para prestar concurso público. E sua capacidade se sobressaiu: foi admitida em uma grande empresa pública.

A princípio, talvez sua primeira decepção na vida: aquela energia trocada com os alunos substituída pela burocracia e pelas intrigas dos corredores, reverberadas pela rádio peão. Na inércia da organização, ela se acomodou; perdeu um pouco do brilho nos olhos, mas pode recompensar materialmente sua amada família. Hoje, ganha mais que como professora e mais que o marido.

Fica indignada quando suspeita de um erro. Tem dificuldade de segurar a língua, de não expressar o que pensa e principalmente o que sente. Mas sempre enxerga o lado positivo das situações. O que não interessa, pois ela é o que é pelos imperativos econômicos.

Epílogo

Numa repartição pública, aproxima-se o dissídio salarial. As negociações estão emperradas e o risco de deflagração de greve é iminente. O chefe, Mefibosete, com larga vivência no assunto, é favorável ao movimento, mas não pode aderir por força do cargo. Instiga seus subordinados, mas ao mesmo tempo não entra em conflito com seus superiores. Já esteve no comando do movimento sindical em outras jornadas, e saiu chamuscado tanto pelo desgaste com a direção da empresa, quanto com os colegas que o viam como um oportunista. Oscila entre a consciência tranquila e o saco cheio. Vive um dilema interior, um paradoxo a que reage com estoicismo e resignação.

Já Filóstrego procura ser prático. Sabe que um grão de areia não altera a configuração da praia e, apesar de concordar com a greve, não pretende fazer, uma vez que como seu salário é inferior ao que ganhava, as horas-extra são parte imprescindível do orçamento familiar. No fim das contas, vai compartilhar os ganhos com os que colocaram a cabeça a prêmio. Situação desagradável, por certo, mas que julga será amainada pelo tempo.

Por seu turno, Berchiolina acredita que o mundo será melhor se as pessoas lutarem por seus direitos. Seu chefe incutiu nela a ideia de que a paralisação dos trabalhadores é uma reação e o único caminho diante da intransigência patronal. Nunca se imaginou participando de piquetes e manifestações, mas hoje vê que essa é a saída. Pretende conversar com todos os demais para que cada um assuma a sua parte nessa construção coletiva. E ensina a seus filhos que só é digno de direitos o cidadão que luta por eles.

Ha certo ou errado nessa história?

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

BIOHISTÓRIAS - I



No final do século 19, a África já tinha sido duramente atingida por séculos de tráfico de escravos e exploração de seus recursos naturais, notadamente os minerais. Mesmo assim, ainda existiam no continente sociedades prósperas e vigorosas, econômica e culturalmente.

Uma única e aparentemente irrelevante intervenção europeia mudou esse quadro de forma abrupta, devastadora e irreversível.

Em meados da década de 1880, uma força expedicionária italiana fez uma de suas periódicas incursões no nordeste da África. Sua permanência foi curta, mas teve consequências catastróficas. Os italianos trouxeram consigo cabeças de gado para sua alimentação; e essas cabeças de gado por sua vez trouxeram e legaram à África a Rinderpest, ou peste do gado.

A Rinderpest é uma moléstia infecciosa de ruminantes, altamente contagiosa e virulenta, causada por um vírus, Tortor bovis. O vírus tem um período de incubação curto, de três a cinco dias. Os primeiros sintomas da doença são lassitude e inapetência, acompanhadas de febre de mais de 40 graus. Seguem-se supurações oculares, nasais e bucais, diarréia, perda de massa corporal, desidratação e disenteria, e finalmente sobrevêm, após não mais de duas semanas, prostração, coma e morte.

Originária das estepes da Ásia, a Rinderpest chegou à Europa no rastro das invasões de povos como os mongóis. Após vários surtos epidêmicos, a doença se tornou endêmica em algumas regiões da Europa; e, como frequentemente acontece com endemias, ocorreu um processo de seleção natural pelo qual os indivíduos naturalmente resistentes sobreviviam e se reproduziam, e seus descendentes, ou parte deles, possuíam imunidade parcial ou tolerância. Eram infectados mas não desenvolviam a doença, tornando-se assim portadores e transmissores assintomáticos.

Mas até então a Rinderpest era totalmente inexistente na África sub-saariana, possivelmente porque os camelos, os únicos animais a cruzar o deserto, não eram suscetíveis à moléstia. E portanto nenhuma espécie nativa era dotada de qualquer defesa imunológica contra a doença.

Sem a barreira protetora do deserto, a Rinderpest se disseminou de forma avassaladora, primeiro pelo chamado Chifre da África e rapidamente por todo o continente. Em 1887, a "peste do gado" surgiu na Eritreia, local da invasão italiana, e em menos de um ano havia se espalhado por toda a Etiópia. Dali seguiu dois caminhos. Para o oeste, através do Sudão e do Chade, e em cinco anos chegou ao Atlântico. Para o sul, através do Quênia e de Tanganica, e dali penetrando no centro do continente.

Antes do final do século 19, a epidemia tinha chegado à África do Sul, apesar das tentativas pelas autoridades das então ainda incipientes colônias inglesas ali já estabelecidas, de impedir sua passagem erguendo uma barreira sanitária ao longo de 1.500 quilômetros, e havia dizimado quase todo o gado da região.

E destruído, por onde passou, as sociedades nativas.

A doença não afeta seres humanos, mas aquelas sociedades tiveram suas bases destroçadas. Os pastores e criadores perderam seus rebanhos. Os agricultores ficaram privados dos animais de tração para seus arados e para as rodas de água que serviam para irrigar seus campos. E os caçadores viram desaparecer suas presas, pois a Rinderpest ataca indiscriminadamente espécies domésticas e selvagens.

O morticínio é até hoje incalculável. Pela fome, e pelas epidemias oportunistas que se instalaram aproveitando o quadro de subnutrição generalizada. E também pelo impacto psicológico. Tribos como os Masai, celebrados como prósperos criadores de gado e bravos guerreiros, viram toda sua estrutura social desabar da noite para o dia e se reduziram a pedintes, implorando por comida às caravanas que cruzavam seu território. Os Fulani, outra tribo antes rica e poderosa, perderam todo seu gado e, incapazes de aceitar o flagelo que os havia acometido, se auto-destruíram quase que à extinção matando suas próprias famílias e se suicidando em massa.

Para as potências coloniais europeias a Rinderpest foi uma benção. Ao avançarem maciçamente sobre a África no final do século 19 e no começo do século 20 encontraram uma população empobrecida e assolada por doenças, drasticamente reduzida, em alguns casos a menos de 10% do que tinha sido uma ou duas décadas atrás, e incapaz de oferecer qualquer resistência significativa aos invasores. Poucas, se alguma, conquistas coloniais terão sido tão fáceis quanto a da África pós-Rinderpest.

Mas a peste do gado teve outra consequência: mudou a própria ecologia do continente. Até então, as grandes manadas que ocupavam as campinas africanas limitavam o crescimento da vegetação, tanto pelo pasto quanto por sua presença física. Com o desaparecimento dessas manadas, as planícies foram tomadas pelas gramíneas, que cresciam sem qualquer fator limitador, e a vegetação arbórea e arbustífera se espalhou por vastas áreas de florestas e cerrados.

Esse ambiente se mostrou propício à proliferação da mosca tsé-tsé, um grupo de insetos hematófagos do gênero Glossina que infesta tanto animais como seres humanos, e é o transmissor do parasita causador da trepanossomose conhecida como "doença do sono" (outra espécie de trepanossoma é causador da Doença de Chagas). A doença é caracterizada por febre e inflamação das glândulas linfáticas, seguidas, quando ocorre o comprometimento da medula espinhal e do cérebro, por profunda letargia (daí seu nome) e, numa alta proporção de casos, de morte.

De início a Rinderpest também afetou a mosca tsé-tsé negativamente, ao dizimar seus hospedeiros animais, domésticos e selvagens, e humanos. Mas a vegetação exuberante que passou a dominar as campinas forneceu o terreno ideal para que as moscas adultas depositassem suas larvas e assim procriassem em grande número, o que permitiu à tsé-tsé sobreviver. Quando a epidemia de Rinderpest cedeu, por falta de vítimas, as populações de animais selvagens, por não dependerem de humanos para sua subsistência, se recuperaram muito mais rápida e intensamente do que as de amimais domésticos e de humanos. E a mosca tsé-tsé pôde se espalhar pelos novos hospedeiros, livre de qualquer controle. Por sua vez, a infestação pela tsé-tsé e a doença de que é portadora impediram que os humanos e seu gado voltassem a ocupar as planícies como áreas de pasto. Nessas condições, a tsé-tsé passou a dominar o novo ambiente, incluindo o leste da África onde era inexistente, e regiões do sul do continente em que havia praticamente desaparecido.

A combinação de mudança ambiental e devastação colonial fez com que as sociedades já arrasadas pela peste do gado nunca pudessem se recuperar. Além disso, muitos dos conflitos tribais que hoje ocorrem são fruto não de rivalidades milenares, mas sim de disputas resultantes da Rinderpest, quer por comida no auge da epidemia quer pelas escassas áreas de pastoreio existentes no ambiente por ela criado, e agravadas pelas tensões geradas pelas fronteiras arbitrariamente riscadas no mapa pelas potências coloniais.

Ironicamente, uma outra iniciativa europeia, esta bem intencionada, serviu para preservar as condições econômicas adversas. Os colonizadores supuseram, erroneamente, que o ambiente com o qual se depararam - vastas áreas de planícies cobertas por grama alta e ocupadas por animais selvagens, de cerrados e de florestas, todas infestadas pela mosca tsé-tsé e sem a presença do homem e de animais domésticos - era a "África primitiva"; e quando mais tarde surgiram os primeiros movimentos "conservacionistas" (alguns eivados de uma boa dose de hipocrisia) que levaram à criação dos parques nacionais e das reservas animais foi esse ambiente supostamente "primitivo" que se estabeleceu como modelo para a preservação, não raro com o beneplácito e a colaboração dos governos locais, desesperadamente necessitados das receitas em moeda forte provenientes do "turismo ecológico". Com isso, as áreas de "preservação" foram para sempre vedadas a qualquer atividade econômica, desprezando o fato de que, antes da Rinderpest, homem, gado e fauna selvagem dividiam equilibradamente o território, e de que esse equilíbrio era dinâmico, com ciclos de predominância dos diversos tipos de vegetação e formas de ocupação.

Isto criou ainda uma nova figura antes inexistente: o "poacher", ou caçador clandestino, tanto para obter alimento quanto para se apoderar, quase sempre para serem contrabandeados para países ricos, de despojos valiosos como chifres de rinoceronte ou patas de macacos. O "poacher" tornou-se, ao lado do ditador caricato, o grande vilão da África pós-colonial, a ser bravamente combatido pelo destemido "defensor da natureza", sejam naturalistas (muitos deles de fato idealistas e dedicados) sejam heróis de ficção - infalivelmente caucasianos. As "vozes d'África", como sempre, não se fazem ouvir.

A África que nos é mostrada hoje, nos documentários sobre a "África selvagem" e nos noticiários sobre as "guerras tribais", na ficção popular e nas biografias romanceadas "baseadas em fatos reais", é portanto em mais de um sentido uma artificialidade criada pela intervenção europeia, direta e indireta, na ecologia do continente, incluída sua ecologia social.

Carlos Eduardo Alcântara Martins
Economista graduado pela PUC ( RJ) - Brasil.