No
final do século 19, a
África já tinha sido duramente atingida por séculos de tráfico de escravos e
exploração de seus recursos naturais, notadamente os minerais. Mesmo assim,
ainda existiam no continente sociedades prósperas e vigorosas, econômica e culturalmente.
Uma
única e aparentemente irrelevante intervenção europeia mudou esse quadro de
forma abrupta, devastadora e irreversível.
Em
meados da década de 1880, uma força expedicionária italiana fez uma de suas
periódicas incursões no nordeste da África. Sua permanência foi curta, mas teve
consequências catastróficas. Os italianos trouxeram consigo cabeças de gado
para sua alimentação; e essas cabeças de gado por sua vez trouxeram e legaram à
África a Rinderpest, ou peste do gado.
A
Rinderpest é uma moléstia infecciosa de ruminantes, altamente contagiosa e
virulenta, causada por um vírus, Tortor bovis. O vírus tem um período de
incubação curto, de três a cinco dias. Os primeiros sintomas da doença são
lassitude e inapetência, acompanhadas de febre de mais de 40 graus. Seguem-se
supurações oculares, nasais e bucais, diarréia, perda de massa corporal,
desidratação e disenteria, e finalmente sobrevêm, após não mais de duas
semanas, prostração, coma e morte.
Originária
das estepes da Ásia, a Rinderpest chegou à Europa no rastro das invasões de
povos como os mongóis. Após vários surtos epidêmicos, a doença se tornou
endêmica em algumas regiões da Europa; e, como frequentemente acontece com
endemias, ocorreu um processo de seleção natural pelo qual os indivíduos
naturalmente resistentes sobreviviam e se reproduziam, e seus descendentes, ou
parte deles, possuíam imunidade parcial ou tolerância. Eram infectados mas não
desenvolviam a doença, tornando-se assim portadores e transmissores
assintomáticos.
Mas
até então a Rinderpest era totalmente inexistente na África sub-saariana,
possivelmente porque os camelos, os únicos animais a cruzar o deserto, não eram
suscetíveis à moléstia. E portanto nenhuma espécie nativa era dotada de
qualquer defesa imunológica contra a doença.
Sem
a barreira protetora do deserto, a Rinderpest se disseminou de forma
avassaladora, primeiro pelo chamado Chifre da África e rapidamente por todo o
continente. Em 1887, a
"peste do gado" surgiu na Eritreia, local da invasão italiana, e em
menos de um ano havia se espalhado por toda a Etiópia. Dali seguiu dois
caminhos. Para o oeste, através do Sudão e do Chade, e em cinco anos chegou ao
Atlântico. Para o sul, através do Quênia e de Tanganica, e dali penetrando no
centro do continente.
Antes
do final do século 19, a
epidemia tinha chegado à África do Sul, apesar das tentativas pelas autoridades
das então ainda incipientes colônias inglesas ali já estabelecidas, de impedir
sua passagem erguendo uma barreira sanitária ao longo de 1.500 quilômetros,
e havia dizimado quase todo o gado da região.
E
destruído, por onde passou, as sociedades nativas.
A
doença não afeta seres humanos, mas aquelas sociedades tiveram suas bases
destroçadas. Os pastores e criadores perderam seus rebanhos. Os agricultores
ficaram privados dos animais de tração para seus arados e para as rodas de água
que serviam para irrigar seus campos. E os caçadores viram desaparecer suas
presas, pois a Rinderpest ataca indiscriminadamente espécies domésticas e
selvagens.
O
morticínio é até hoje incalculável. Pela fome, e pelas epidemias oportunistas
que se instalaram aproveitando o quadro de subnutrição generalizada. E também
pelo impacto psicológico. Tribos como os Masai, celebrados como prósperos
criadores de gado e bravos guerreiros, viram toda sua estrutura social desabar
da noite para o dia e se reduziram a pedintes, implorando por comida às
caravanas que cruzavam seu território. Os Fulani, outra tribo antes rica e
poderosa, perderam todo seu gado e, incapazes de aceitar o flagelo que os havia
acometido, se auto-destruíram quase que à extinção matando suas próprias
famílias e se suicidando em massa.
Para
as potências coloniais europeias a Rinderpest foi uma benção. Ao avançarem
maciçamente sobre a África no final do século 19 e no começo do século 20
encontraram uma população empobrecida e assolada por doenças, drasticamente
reduzida, em alguns casos a menos de 10% do que tinha sido uma ou duas décadas
atrás, e incapaz de oferecer qualquer resistência significativa aos invasores.
Poucas, se alguma, conquistas coloniais terão sido tão fáceis quanto a da
África pós-Rinderpest.
Mas
a peste do gado teve outra consequência: mudou a própria ecologia do
continente. Até então, as grandes manadas que ocupavam as campinas africanas
limitavam o crescimento da vegetação, tanto pelo pasto quanto por sua presença
física. Com o desaparecimento dessas manadas, as planícies foram tomadas pelas
gramíneas, que cresciam sem qualquer fator limitador, e a vegetação arbórea e
arbustífera se espalhou por vastas áreas de florestas e cerrados.
Esse
ambiente se mostrou propício à proliferação da mosca tsé-tsé, um grupo de
insetos hematófagos do gênero Glossina que infesta tanto animais como seres
humanos, e é o transmissor do parasita causador da trepanossomose conhecida
como "doença do sono" (outra espécie de trepanossoma é causador da
Doença de Chagas). A doença é caracterizada por febre e inflamação das
glândulas linfáticas, seguidas, quando ocorre o comprometimento da medula
espinhal e do cérebro, por profunda letargia (daí seu nome) e, numa alta
proporção de casos, de morte.
De
início a Rinderpest também afetou a mosca tsé-tsé negativamente, ao dizimar
seus hospedeiros animais, domésticos e selvagens, e humanos. Mas a vegetação
exuberante que passou a dominar as campinas forneceu o terreno ideal para que
as moscas adultas depositassem suas larvas e assim procriassem em grande
número, o que permitiu à tsé-tsé sobreviver. Quando a epidemia de Rinderpest
cedeu, por falta de vítimas, as populações de animais selvagens, por não
dependerem de humanos para sua subsistência, se recuperaram muito mais rápida e
intensamente do que as de amimais domésticos e de humanos. E a mosca tsé-tsé
pôde se espalhar pelos novos hospedeiros, livre de qualquer controle. Por sua
vez, a infestação pela tsé-tsé e a doença de que é portadora impediram que os
humanos e seu gado voltassem a ocupar as planícies como áreas de pasto. Nessas
condições, a tsé-tsé passou a dominar o novo ambiente, incluindo o leste da
África onde era inexistente, e regiões do sul do continente em que havia
praticamente desaparecido.
A
combinação de mudança ambiental e devastação colonial fez com que as sociedades
já arrasadas pela peste do gado nunca pudessem se recuperar. Além disso, muitos
dos conflitos tribais que hoje ocorrem são fruto não de rivalidades milenares,
mas sim de disputas resultantes da Rinderpest, quer por comida no auge da
epidemia quer pelas escassas áreas de pastoreio existentes no ambiente por ela
criado, e agravadas pelas tensões geradas pelas fronteiras arbitrariamente
riscadas no mapa pelas potências coloniais.
Ironicamente,
uma outra iniciativa europeia, esta bem intencionada, serviu para preservar as
condições econômicas adversas. Os colonizadores supuseram, erroneamente, que o
ambiente com o qual se depararam - vastas áreas de planícies cobertas por grama
alta e ocupadas por animais selvagens, de cerrados e de florestas, todas
infestadas pela mosca tsé-tsé e sem a presença do homem e de animais domésticos
- era a "África primitiva"; e quando mais tarde surgiram os primeiros
movimentos "conservacionistas" (alguns eivados de uma boa dose de
hipocrisia) que levaram à criação dos parques nacionais e das reservas animais
foi esse ambiente supostamente "primitivo" que se estabeleceu como
modelo para a preservação, não raro com o beneplácito e a colaboração dos governos
locais, desesperadamente necessitados das receitas em moeda forte provenientes
do "turismo ecológico". Com isso, as áreas de "preservação"
foram para sempre vedadas a qualquer atividade econômica, desprezando o fato de
que, antes da Rinderpest, homem, gado e fauna selvagem dividiam
equilibradamente o território, e de que esse equilíbrio era dinâmico, com
ciclos de predominância dos diversos tipos de vegetação e formas de ocupação.
Isto
criou ainda uma nova figura antes inexistente: o "poacher", ou caçador
clandestino, tanto para obter alimento quanto para se apoderar, quase sempre
para serem contrabandeados para países ricos, de despojos valiosos como chifres
de rinoceronte ou patas de macacos. O "poacher" tornou-se, ao lado do
ditador caricato, o grande vilão da África pós-colonial, a ser bravamente
combatido pelo destemido "defensor da natureza", sejam naturalistas
(muitos deles de fato idealistas e dedicados) sejam heróis de ficção -
infalivelmente caucasianos. As "vozes d'África", como sempre, não se
fazem ouvir.
A
África que nos é mostrada hoje, nos documentários sobre a "África
selvagem" e nos noticiários sobre as "guerras tribais", na
ficção popular e nas biografias romanceadas "baseadas em fatos
reais", é portanto em mais de um sentido uma artificialidade criada pela
intervenção europeia, direta e indireta, na ecologia do continente, incluída
sua ecologia social.
Carlos Eduardo Alcântara Martins
Economista graduado pela PUC ( RJ) - Brasil.
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