quarta-feira, 11 de setembro de 2013

FÁBULA DA BUROCRACIA CLASSISTA

Parte I

Mefibosete chegou à maioridade em 1994, ano que viu o milagre do plano real. Para ele, pouca diferença: antes, não podia comprar nada além de CR$ 2.750,00, e jamais conheceu a cédula da baiana. Depois, seu parco limite se tornou o R$ 1,00 - e também demorou bem uns dez anos para fisgar com as próprias mãos sua primeira garoupa.

Ao cabo do fatídico ano, além da eleição de FHC, houve a aprovação no vestibular. Oriundo do ensino médio público (e técnico), a afinidade com o desenho o conduziu à Arquitetura e Urbanismo. Só teve um que se arrependeu mais desta escolha que o próprio Mefibosete: o reitor da Universidade (católica), que não viu a cor do dinheiro durante os três semestres em que insistiu no erro de mantê-lo estudando.

Desde que o mundo é mundo, o curso de Arquitetura e Urbanismo é elitista. Seus amigos, os párias do curso, não enquadravam em nenhuma das tribos. Discutiam como ganhar dinheiro após formados; discussão que, repetida inúmeras vezes, nunca chegou a lugar nenhum. Não havia empregos. Nem oportunidades. Nem sonhos

Até que, num rompante de obstinação, largou a faculdade. Foi trabalhar, voltou a estudar, ler, criou sua própria disciplina. Correu como Ahasverus, o judeu errante, e como vivia a "idade de ouro da meritocracia", iniciava 1997 como docente da egrégia e vetusta centenária Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás.

Lá, as conversas sobre o futuro profissional eram diferentes: primeiro, os filhos das tradicionais famílias jurídicas, que continuariam o negócio de seus ancestrais; depois, desde a aula inaugural já haviam cambalacheiros, de olho em brechas nebulosas da advocacia; por fim, os que alentavam o ideal burguês, a ascensão social, vislumbravam uma chance nos concursos públicos.

Naqueles idos, não havia lugar para todos, a globalização e o presidente ditavam, e a única alternativa de prover a subsistência era o concurso, justamente para exercer funções que haviam sido hostilizadas pela mídia perante a sociedade: o funcionário público era o vilão do país.

E Mefibosete já não era mais aquele aluno diligente: além do fastio com a verborragia hipócrita do direito, outros interesses cruzaram seu caminho. Enamorou-se pelo movimento estudantil e lá foi disputar CA e DCE. Quando o flerte encerrou-se, as mais promissoras carreiras jurídicas estavam à léguas de distância e lhe restou um certame de nível médio, donde ingressou no emprego de onde tira o sustento de sua família até o presente momento.

Desde 2001 ocupou vários cargos, sempre de natureza técnica, se envolveu e se afastou do movimento sindical. Hoje, no escalão intermediário, é um gestor mais preocupado com a qualidade de vida de sua equipe do que com resultados numéricos. Nunca tirou vantagem de sua história política, exceto a experiência adquirida. Agrada uns e desagrada outros. Ri, chora, se emociona, ama e odeia. Mas isso não importa: sua vida se conduziu por essa linha graças às interferências econômicas.

Parte II

Filóstrego nasceu numa corrutela que só aparece no maior zoom do Google Maps, em Minas Gerais. Pai da roça, mãe também, ocupam o mesmo pedaço de chão desde a partilha de Adão, um lugar esquecido pela modernidade. Não se lembra de como era a vida antes do real, nem no que implica a inflação.

Ainda assim, o jovem sonhava com o mundo. Queria ser jogador de futebol, largar a miséria e o atraso, como tantos outros fizeram. A TV, aliás o único canal que chegava naquele grotão, deu exemplo inúmeras vezes a Filóstrego, que se empenhava como um faminto atrás de um prato de comida, em cada pelada nas vizinhanças.

Aos 16 anos, percebeu que apesar de muito bom de bola, o destino não lhe abriria essa porta. Desacorçoado, foi chorar nos ombros das moças faceiras, que ficavam na praça do lugarejo, após a missa de domingo. Sem grana, sem emprego, mas havia mil garotas afim.

Uma dessas se tornou sua futura esposa. Durona, mandona, uns bons anos mais velha que ele, lhe ajudou a tomar prumo na vida. Até porque aos 18, Filóstrego já era papai.

Foram para uma cidade próxima, logicamente maior, onde iniciou seu curso superior em Ciências Contábeis, numa faculdade de araque. Não tomou conhecimento: determinado que só, foi o melhor aluno do curso, desde sua fundação, na década anterior. Ganhou convite para trabalhar num grande banco privado e uma bolsa para pós graduação.

Estávamos em 2006. Aos 24 anos, sua vida definitivamente deixava para trás a miséria e o atraso.

Tudo corria às mil maravilhas, o segundo filho veio, e ano passado, depois de suportar a pressão do trabalho no banco por seis anos, Filóstrego optou por retomar os estudos e concorrer a um cargo público. Logo de cara, no primeiro, foi aprovado. Teve que se deslocar uns quilômetros, até Goiás, e recomeçar como "soldado raso". 

Mas o ganho em bem estar compensou as mudanças. Adora jogar seu futebol, apesar do joelho não ser mais o mesmo. É um super pai e marido dedicado. Crítico do governo do PT até a medula. Se bem que nada disso é relevante, pois também chegou até aqui por força das circunstâncias econômicas.


Parte III

Berchiolina levava uma vida de conto de fadas. Viveu o suficiente para comprar balas e chicletes nas moedas anteriores ao Real, mas não se lembra com exatidão da época. Ingênua e pueril, se casou com o primeiro namorado, a quem conheceu aos 15 anos, em 1993. Tudo certinho, bucólico, sua vida era onde a realidade mais se aproximava da Pollyanna.

Durante um bom tempo, tiveram o privilégio de brincar de casinha, diversão patrocinada por pais amorosos e sogros compreensivos. Seu amor ia trabalhar de bicicleta enquanto ela arrumava os mimos da casa com todo esmero. Logo, estava caprichosamente vestida, esperando-o no portão e suspirando de saudades...

O relacionamento amadureceu e as aspirações cresceram. Com filhos, a folga foi dando lugar ao aperto, e Berchiolina não teve dúvidas: estudada que era, para satisfação do pai coruja, arregaçou as mangas e foi trabalhar fora.

Se tornou professora, de português, no ensino fundamental e médio. Adorada pela maioria dos estudantes, era ao mesmo tempo suave e rígida, doce e exigente. Transpirava as melhores intenções, e era vista como uma mãezona, ou como aquela irmã  mais velha que toda adolescente gostaria de ter.

Nunca se aprofundou em política, mas seu agudo senso de justiça deixava claro o que era certo e o que era errado. Com essa intuição, repugnou a corrupção denunciada na imprensa livre, que varreu o país do Mensalão para cá.

Porém, mais e mais necessidades surgiram, e os vencimentos do magistério já não davam conta das demandas. Incentivada pelo marido, Berchiolina se preparou para prestar concurso público. E sua capacidade se sobressaiu: foi admitida em uma grande empresa pública.

A princípio, talvez sua primeira decepção na vida: aquela energia trocada com os alunos substituída pela burocracia e pelas intrigas dos corredores, reverberadas pela rádio peão. Na inércia da organização, ela se acomodou; perdeu um pouco do brilho nos olhos, mas pode recompensar materialmente sua amada família. Hoje, ganha mais que como professora e mais que o marido.

Fica indignada quando suspeita de um erro. Tem dificuldade de segurar a língua, de não expressar o que pensa e principalmente o que sente. Mas sempre enxerga o lado positivo das situações. O que não interessa, pois ela é o que é pelos imperativos econômicos.

Epílogo

Numa repartição pública, aproxima-se o dissídio salarial. As negociações estão emperradas e o risco de deflagração de greve é iminente. O chefe, Mefibosete, com larga vivência no assunto, é favorável ao movimento, mas não pode aderir por força do cargo. Instiga seus subordinados, mas ao mesmo tempo não entra em conflito com seus superiores. Já esteve no comando do movimento sindical em outras jornadas, e saiu chamuscado tanto pelo desgaste com a direção da empresa, quanto com os colegas que o viam como um oportunista. Oscila entre a consciência tranquila e o saco cheio. Vive um dilema interior, um paradoxo a que reage com estoicismo e resignação.

Já Filóstrego procura ser prático. Sabe que um grão de areia não altera a configuração da praia e, apesar de concordar com a greve, não pretende fazer, uma vez que como seu salário é inferior ao que ganhava, as horas-extra são parte imprescindível do orçamento familiar. No fim das contas, vai compartilhar os ganhos com os que colocaram a cabeça a prêmio. Situação desagradável, por certo, mas que julga será amainada pelo tempo.

Por seu turno, Berchiolina acredita que o mundo será melhor se as pessoas lutarem por seus direitos. Seu chefe incutiu nela a ideia de que a paralisação dos trabalhadores é uma reação e o único caminho diante da intransigência patronal. Nunca se imaginou participando de piquetes e manifestações, mas hoje vê que essa é a saída. Pretende conversar com todos os demais para que cada um assuma a sua parte nessa construção coletiva. E ensina a seus filhos que só é digno de direitos o cidadão que luta por eles.

Ha certo ou errado nessa história?