INTRODUÇÃO
1. Do
início do feudalismo até meados do séc. XVI, o poder político se
concentrava no monarca. De baixo refinamento teórico, sua essência
foi descrita tardiamente por Bossuet (1627-1704), no que tange à
origem transcendental, o direito divino dos reis, representantes
mundanos do maior poder ao qual o homem do medievo reverenciava, o
poder de Deus. “O trono régio não é o trono de um homem, senão
o do mesmo Deus”.
2. Como reação à autocracia
surge o liberalismo, que conforma em suas teses, não sem
contradições internas, os anseios da emergente classe burguesa com
a manutenção dos privilégios aristocráticos. Em que pese suas
pretensões universais, o liberalismo nunca encampou os desejos das
classes inferiores – servos de gleba, artesãos, incipientes
trabalhadores urbanos. Também se presta a pano de fundo teórico do
capitalismo, que empírico não foi idealizado previamente.
3. Essa
introdução propositalmente esquemática, tem como objetivo
esclarecer que a doutrina liberal jamais se coadunou com as
necessidades populares. Apesar de buscar no povo sua legitimação,
os procedimentos de ascensão, exercício e manutenção do poder
político nunca foram acessíveis erga omnes. Desde sua
gênese, o liberalismo se funda numa farsa.
A
INFÂNCIA NO INÍCIO DO CAPITALISMO
4. Outros engodos, considerados
pouco atrativos hoje em dia, participaram da matriz dessa ideologia.
Para John Locke (1632-1704) convém, já desde os três anos,
direcionar para o trabalho as crianças das famílias que não têm
condições para alimentá-las. Necessária também a intervenção
na vida dos seus pais, retirando a guarda e o respectivo pátrio
poder, entre outras restrições.
5. Um século à frente, não há
divergência substancial entre o posicionamento de Locke e Jeremy
Bentham (1748-1832), que fala com entusiasmo das fábricas onde
crianças até os quatro anos de idade ganham alguma coisa, e com
cinco ganham o suficiente para viver bem (!). Diante desta lógica,
torna-se positivo “tomar as crianças das mãos dos pais o mais
possível e até totalmente”. Uma vez interditadas, as
possibilidades são imensas:
“Vocês podem
jogá-los em uma casa de inspeção e depois fazer o que bem
entenderem. Poderiam permitir, sem remorso, ao pais de dar uma
espreitada por trás da cortina no lugar do mestre. Com isso,
poderiam manter separados por 17 ou 18 anos os vossos jovens alunos
homens e mulheres”.
6. A situação degradante
imposta às crianças das famílias mais pobres nos primórdios do
capitalismo causa repugnância até em alguns liberais. É do
economista Edward Wakefield (1796-1862) a sentença que define com
clareza o que ocorria: “Não sou eu, é toda imprensa inglesa que
chama de escravos brancos as crianças inglesas” de derivação
popular. “São obrigadas a jornadas tão extensas que desmaiam de
sono nas manufaturas para depois serem acordadas e tornarem ao
trabalho mediante pancadas e suplícios de toda espécie”.
7. Pior
é a situação dos que não são reclamados, dos órfãos. É dessa
época a transformação dos institutos de acolhida, os orfanatos: na
Idade Média tinham por função receber os filhos portadores de
deficiência e os espúrios, educando-os para a vida religiosa. Daí,
passam a recinto de treinamento para trabalhos forçados, as chamadas
casas de correção. Nas portas destas casas haviam anúncios que
promoviam a venda dos infantes, o que novamente é atestado por
Wakefield: “Em Londres, o preço de meninos e meninas colocados
assim no mercado é sensivelmente inferior ao dos escravos negros na
América; nas regiões rurais, a mercadoria em questão é ainda mais
barata”.
8. Desfilando
mórbida ironia, Jonathan Swift (1667-1745) apresenta uma “Modesta
Proposta para impedir que os filhos dos pobres da Irlanda pesem sobre
seus pais ou sobre o país, tornando-os úteis ao povo”. A sátira
buscava evitar a essas crianças a penúria e o desabrigo a que
estavam condenadas, poupá-las das doenças, agravadas pela fome e
pelo frio, e dos vícios que vicejavam nas ruelas imundas, salvá-las
da vida solitária de trombadinhas perseguidos ou operários
explorados horas a fio. Swift propunha, crítica e jocosamente,
reservar 10% das crianças para procriação, perpetuando a espécie,
e o restante que fossem engordadas e abatidas tais quais porquinhos,
tornando-se refinada iguaria nos banquetes dos grandes proprietários.
A pele, no dizer do autor, é igualmente deliciosa, mas quem, por
qualquer particularidade gustativa, não a apreciasse, poderia
empregá-la na confecção de luvas, por exemplo. O material não é
apenas bonito, bem como macio e resistente, garante Swift. Chocando
meio mundo, a proposta repercutiu como um grito de fúria do povo
irlandês. A troça do autor mostrava a que ponto a miséria pode
atingir os homens, sob o patrocínio do sistema liberal-capitalista.
9. Outra
manifestação literária se dá no insurgente realismo. O clássico
Oliver Twist, de Charles Dickens (1812-1870), narra as aventuras e
desventuras de um garoto que sequer nome tem, tratando do fenômeno
da delinqüência causada pelas péssimas condições de vida das
classes subalternas. Levado a um reformatório em tenra idade, Oliver
é exposto a situações humilhantes até ser adquirido por um
comerciante que precisa de um capataz. Não suportando o jugo de seu
proprietário, foge para Londres, e é apresentado à atualíssima
condição dos menores abandonados, que vivem nas ruas praticando
delitos de todos os gêneros, de forma a garantir sua subsistência.
Ainda que apresente um final conciliador, com o jovem sendo adotado
por um benevolente aristocrata, fica óbvio o insignificante alcance
da caridade privada e a calamitosa desigualdade social causada pelo
novo (à época) modelo de produção, às custas da exploração do
trabalho alheio.
10. Marx
(1818-1883) denuncia o “grande rapto herodiano” das crianças
realizado pelo capital no início do sistema de fábrica nas casas
dos pobres e nos orfanatos, por meio do qual incorporou um material
humano totalmente desprovido de vontade. Além da utilização das
casas de correção como fonte quase inesgotável de mão-de-obra
passiva a custo ínfimo, é possível tecer considerações de
caráter mais geral: os filhos dos pobres estão destinados à
primeira ocasião a serem utilizados exatamente na sua qualidade de
instrumentos e máquinas de trabalho, o que se explicita no relato de
Engels (1820-1895) acerca das condições da classe trabalhadora na
Inglaterra do século XIX, reportando minúcias, que iam da forma de
construção das sub-habitações a alimentação, precária,
decomposta e insuficiente. Lembremos que formavam quadros da classe
trabalhadora operários de até quatro anos de idade, e não havia
complacência que isentasse os pequenos das agruras generalizadas.
11. Remonta
à essa época a definição etmológica de proletário: os
descendentes das grandes proles típicas do povo campesino,
objetivando o número de filhos suficientes para cultivar a terra.
Com uma das mãos, o capitalismo expulsou essas populações dos
campos, graças ao cercamento das terras, rumo aos caminhos e
estradas. Com a outra, sancionou uma brutal legislação que previa o
enforcamento sumário de todos que se encontrassem em vadiagem ou
mendicância, coagindo a migração para as grandes cidades e
constituindo o excedente populacional que caracteriza desde então a
classe trabalhadora. Outra ponderação é lembrar que a Inglaterra
era a maior economia do mundo, sediando um império tão vasto, ao
ponto de se dizer que sob seu solo o sol jamais se punha. Apesar de
tamanha pujança e abastança, a infância dos humildes foi relegada
a desumanidade. O que imaginar então dos rincões onde o capitalismo
não foi capaz de gerar a mesma riqueza?
DA
MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
12. Varrida
para debaixo do tapete da historiografia oficial, a situação
apresentada não dista muito dos dias atuais. A novidade momentânea
é a capacidade sistêmica em absorver na infância seu primeiro
segmento de mercado. As tradicionais festas religiosas perderam
completamente seu significado imaterial para se converterem em
pretexto à compra de presentes – no caso, as crianças são os
maiores consumidores em potencial.
13. Nesse
contexto, a infância pretensamente digna oferecida à burguesia,
desumaniza tanto quanto se permite. Ao invés das consagradas
brincadeiras infantis, do ludismo que caracteriza essa etapa da vida,
vemos pequenos adultos de quatro anos manuseando computadores, sob
pena de uma futura limitação ao ingressar no mercado de trabalho.
Recente pesquisa aponta que uma criança com alto padrão de vida já
consumiu, aos cinco anos de idade, mais de 1.000 objetos. Estes, com
embargo, têm em seu custo o valor agregado de infinitas marcas,
propagandas e personagens.
14. As
implicações desse modo de vida profundamente alienado se refletem
na precarização das relações sociais. Estas se dão, em última
análise, apenas no consumo. Cada vez mais precocemente se sedimenta
a compreensão de que se mede um ser humano pelo que ele tem, e não
pelo que ele é! Em contrapartida, os adultos gerados por essa
deformidade social crescem com sentimentos infantilizados, sempre
propensos a se enganarem pelos encantos propangandísticos. A máxima
depreendida do senso comum, de que “o que muda de um adulto para
uma criança é o preço dos seus brinquedos”, vai se revestindo de
aspecto perpétuo e inquestionável.
15. Toda
ilusão consumista que o capitalismo oferece sob a aparência de
felicidade cobra seu preço. Prevalecem as leis do mercado, e como a
procura aumenta, o tempo se torna uma mercadoria valorosíssima. E as
crianças estão perdendo seu precioso e irretornável tempo de
formação intelectual, alternando-se ora em sujeitos, ora em objetos
de consumo, expostos ao ridículo pelos pais nos concursos de
talentos mirins. Instigados à férrea competição quando estariam
naturalmente desenvolvendo noções de convivência, de civilidade,
transformar-se-ão em que tipo de adulto?
16. Outra
conseqüência desastrosa da perda da infância e da fetichização
do consumo é a própria fetichização humana. Meninas seguem o
padrão de vestuário e de comportamento das festejadas
apresentadoras de televisão e das dançarinas, reedição não menos
promíscua das antigas coristas, pelo contrário. Se explora uma
proto-sexualidade e uma sensualidade ainda em desenvolvimento –
forçado – cada vez mais cedo.
O
FRACASSO DA ALTERNATIVA LIBERAL-CAPITALISTA
17. As
legislações liberais contemporâneas contemplam o direito à
infância como inalienável, reservando em alguns países inclusive a
dignidade de cláusula pétrea. Não é necessário um exame mais
aprofundado para, no contraste com a realidade, percebermos a falácia
dessa garantia. Na verdade, precisa-se de grande cinismo para
acreditar que a mera condição jurídica seja suficiente para que a
preservação da infância, da formação psíquica e moral do
cidadão, e de toda assistência que lhe compraz, esteja assegurada.
As concessões legais têm forte inspiração socialista, onde pela
primeira vez, por exemplo, se estipulou uma idade mínima para o
início da carreira profissional. Resta claro que se trata de uma
forma de amainar os ímpetos revolucionários, pois somente um
alienado se satisfaria com o que o liberalismo reservou para a
infância nos seus diplomas legais. Nesse caso, quem se alienou da
própria vida, foi todo o direito burguês.
18. Por
fim, não podemos nos cegar para um dado conseqüente desse exame, e
perturbador: a explosão, endêmica, da pedofilia, na forma atual do
capitalismo. Nunca na história da humanidade tal prática esteve tão
alastrada. Sinais dos tempos.