terça-feira, 15 de outubro de 2013

CAPITALISMO E DESTRUIÇÃO DA INFÂNCIA

INTRODUÇÃO

1. Do início do feudalismo até meados do séc. XVI, o poder político se concentrava no monarca. De baixo refinamento teórico, sua essência foi descrita tardiamente por Bossuet (1627-1704), no que tange à origem transcendental, o direito divino dos reis, representantes mundanos do maior poder ao qual o homem do medievo reverenciava, o poder de Deus. “O trono régio não é o trono de um homem, senão o do mesmo Deus”.
2. Como reação à autocracia surge o liberalismo, que conforma em suas teses, não sem contradições internas, os anseios da emergente classe burguesa com a manutenção dos privilégios aristocráticos. Em que pese suas pretensões universais, o liberalismo nunca encampou os desejos das classes inferiores – servos de gleba, artesãos, incipientes trabalhadores urbanos. Também se presta a pano de fundo teórico do capitalismo, que empírico não foi idealizado previamente.
3. Essa introdução propositalmente esquemática, tem como objetivo esclarecer que a doutrina liberal jamais se coadunou com as necessidades populares. Apesar de buscar no povo sua legitimação, os procedimentos de ascensão, exercício e manutenção do poder político nunca foram acessíveis erga omnes. Desde sua gênese, o liberalismo se funda numa farsa.

A INFÂNCIA NO INÍCIO DO CAPITALISMO

4. Outros engodos, considerados pouco atrativos hoje em dia, participaram da matriz dessa ideologia. Para John Locke (1632-1704) convém, já desde os três anos, direcionar para o trabalho as crianças das famílias que não têm condições para alimentá-las. Necessária também a intervenção na vida dos seus pais, retirando a guarda e o respectivo pátrio poder, entre outras restrições.
5. Um século à frente, não há divergência substancial entre o posicionamento de Locke e Jeremy Bentham (1748-1832), que fala com entusiasmo das fábricas onde crianças até os quatro anos de idade ganham alguma coisa, e com cinco ganham o suficiente para viver bem (!). Diante desta lógica, torna-se positivo “tomar as crianças das mãos dos pais o mais possível e até totalmente”. Uma vez interditadas, as possibilidades são imensas:
Vocês podem jogá-los em uma casa de inspeção e depois fazer o que bem entenderem. Poderiam permitir, sem remorso, ao pais de dar uma espreitada por trás da cortina no lugar do mestre. Com isso, poderiam manter separados por 17 ou 18 anos os vossos jovens alunos homens e mulheres”.

6. A situação degradante imposta às crianças das famílias mais pobres nos primórdios do capitalismo causa repugnância até em alguns liberais. É do economista Edward Wakefield (1796-1862) a sentença que define com clareza o que ocorria: “Não sou eu, é toda imprensa inglesa que chama de escravos brancos as crianças inglesas” de derivação popular. “São obrigadas a jornadas tão extensas que desmaiam de sono nas manufaturas para depois serem acordadas e tornarem ao trabalho mediante pancadas e suplícios de toda espécie”.
7. Pior é a situação dos que não são reclamados, dos órfãos. É dessa época a transformação dos institutos de acolhida, os orfanatos: na Idade Média tinham por função receber os filhos portadores de deficiência e os espúrios, educando-os para a vida religiosa. Daí, passam a recinto de treinamento para trabalhos forçados, as chamadas casas de correção. Nas portas destas casas haviam anúncios que promoviam a venda dos infantes, o que novamente é atestado por Wakefield: “Em Londres, o preço de meninos e meninas colocados assim no mercado é sensivelmente inferior ao dos escravos negros na América; nas regiões rurais, a mercadoria em questão é ainda mais barata”.
8. Desfilando mórbida ironia, Jonathan Swift (1667-1745) apresenta uma “Modesta Proposta para impedir que os filhos dos pobres da Irlanda pesem sobre seus pais ou sobre o país, tornando-os úteis ao povo”. A sátira buscava evitar a essas crianças a penúria e o desabrigo a que estavam condenadas, poupá-las das doenças, agravadas pela fome e pelo frio, e dos vícios que vicejavam nas ruelas imundas, salvá-las da vida solitária de trombadinhas perseguidos ou operários explorados horas a fio. Swift propunha, crítica e jocosamente, reservar 10% das crianças para procriação, perpetuando a espécie, e o restante que fossem engordadas e abatidas tais quais porquinhos, tornando-se refinada iguaria nos banquetes dos grandes proprietários. A pele, no dizer do autor, é igualmente deliciosa, mas quem, por qualquer particularidade gustativa, não a apreciasse, poderia empregá-la na confecção de luvas, por exemplo. O material não é apenas bonito, bem como macio e resistente, garante Swift. Chocando meio mundo, a proposta repercutiu como um grito de fúria do povo irlandês. A troça do autor mostrava a que ponto a miséria pode atingir os homens, sob o patrocínio do sistema liberal-capitalista.
9. Outra manifestação literária se dá no insurgente realismo. O clássico Oliver Twist, de Charles Dickens (1812-1870), narra as aventuras e desventuras de um garoto que sequer nome tem, tratando do fenômeno da delinqüência causada pelas péssimas condições de vida das classes subalternas. Levado a um reformatório em tenra idade, Oliver é exposto a situações humilhantes até ser adquirido por um comerciante que precisa de um capataz. Não suportando o jugo de seu proprietário, foge para Londres, e é apresentado à atualíssima condição dos menores abandonados, que vivem nas ruas praticando delitos de todos os gêneros, de forma a garantir sua subsistência. Ainda que apresente um final conciliador, com o jovem sendo adotado por um benevolente aristocrata, fica óbvio o insignificante alcance da caridade privada e a calamitosa desigualdade social causada pelo novo (à época) modelo de produção, às custas da exploração do trabalho alheio.
10. Marx (1818-1883) denuncia o “grande rapto herodiano” das crianças realizado pelo capital no início do sistema de fábrica nas casas dos pobres e nos orfanatos, por meio do qual incorporou um material humano totalmente desprovido de vontade. Além da utilização das casas de correção como fonte quase inesgotável de mão-de-obra passiva a custo ínfimo, é possível tecer considerações de caráter mais geral: os filhos dos pobres estão destinados à primeira ocasião a serem utilizados exatamente na sua qualidade de instrumentos e máquinas de trabalho, o que se explicita no relato de Engels (1820-1895) acerca das condições da classe trabalhadora na Inglaterra do século XIX, reportando minúcias, que iam da forma de construção das sub-habitações a alimentação, precária, decomposta e insuficiente. Lembremos que formavam quadros da classe trabalhadora operários de até quatro anos de idade, e não havia complacência que isentasse os pequenos das agruras generalizadas.
11. Remonta à essa época a definição etmológica de proletário: os descendentes das grandes proles típicas do povo campesino, objetivando o número de filhos suficientes para cultivar a terra. Com uma das mãos, o capitalismo expulsou essas populações dos campos, graças ao cercamento das terras, rumo aos caminhos e estradas. Com a outra, sancionou uma brutal legislação que previa o enforcamento sumário de todos que se encontrassem em vadiagem ou mendicância, coagindo a migração para as grandes cidades e constituindo o excedente populacional que caracteriza desde então a classe trabalhadora. Outra ponderação é lembrar que a Inglaterra era a maior economia do mundo, sediando um império tão vasto, ao ponto de se dizer que sob seu solo o sol jamais se punha. Apesar de tamanha pujança e abastança, a infância dos humildes foi relegada a desumanidade. O que imaginar então dos rincões onde o capitalismo não foi capaz de gerar a mesma riqueza?

DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
12. Varrida para debaixo do tapete da historiografia oficial, a situação apresentada não dista muito dos dias atuais. A novidade momentânea é a capacidade sistêmica em absorver na infância seu primeiro segmento de mercado. As tradicionais festas religiosas perderam completamente seu significado imaterial para se converterem em pretexto à compra de presentes – no caso, as crianças são os maiores consumidores em potencial.
13. Nesse contexto, a infância pretensamente digna oferecida à burguesia, desumaniza tanto quanto se permite. Ao invés das consagradas brincadeiras infantis, do ludismo que caracteriza essa etapa da vida, vemos pequenos adultos de quatro anos manuseando computadores, sob pena de uma futura limitação ao ingressar no mercado de trabalho. Recente pesquisa aponta que uma criança com alto padrão de vida já consumiu, aos cinco anos de idade, mais de 1.000 objetos. Estes, com embargo, têm em seu custo o valor agregado de infinitas marcas, propagandas e personagens.
14. As implicações desse modo de vida profundamente alienado se refletem na precarização das relações sociais. Estas se dão, em última análise, apenas no consumo. Cada vez mais precocemente se sedimenta a compreensão de que se mede um ser humano pelo que ele tem, e não pelo que ele é! Em contrapartida, os adultos gerados por essa deformidade social crescem com sentimentos infantilizados, sempre propensos a se enganarem pelos encantos propangandísticos. A máxima depreendida do senso comum, de que “o que muda de um adulto para uma criança é o preço dos seus brinquedos”, vai se revestindo de aspecto perpétuo e inquestionável.
15. Toda ilusão consumista que o capitalismo oferece sob a aparência de felicidade cobra seu preço. Prevalecem as leis do mercado, e como a procura aumenta, o tempo se torna uma mercadoria valorosíssima. E as crianças estão perdendo seu precioso e irretornável tempo de formação intelectual, alternando-se ora em sujeitos, ora em objetos de consumo, expostos ao ridículo pelos pais nos concursos de talentos mirins. Instigados à férrea competição quando estariam naturalmente desenvolvendo noções de convivência, de civilidade, transformar-se-ão em que tipo de adulto?
16. Outra conseqüência desastrosa da perda da infância e da fetichização do consumo é a própria fetichização humana. Meninas seguem o padrão de vestuário e de comportamento das festejadas apresentadoras de televisão e das dançarinas, reedição não menos promíscua das antigas coristas, pelo contrário. Se explora uma proto-sexualidade e uma sensualidade ainda em desenvolvimento – forçado – cada vez mais cedo.




O FRACASSO DA ALTERNATIVA LIBERAL-CAPITALISTA
17. As legislações liberais contemporâneas contemplam o direito à infância como inalienável, reservando em alguns países inclusive a dignidade de cláusula pétrea. Não é necessário um exame mais aprofundado para, no contraste com a realidade, percebermos a falácia dessa garantia. Na verdade, precisa-se de grande cinismo para acreditar que a mera condição jurídica seja suficiente para que a preservação da infância, da formação psíquica e moral do cidadão, e de toda assistência que lhe compraz, esteja assegurada. As concessões legais têm forte inspiração socialista, onde pela primeira vez, por exemplo, se estipulou uma idade mínima para o início da carreira profissional. Resta claro que se trata de uma forma de amainar os ímpetos revolucionários, pois somente um alienado se satisfaria com o que o liberalismo reservou para a infância nos seus diplomas legais. Nesse caso, quem se alienou da própria vida, foi todo o direito burguês.
18. Por fim, não podemos nos cegar para um dado conseqüente desse exame, e perturbador: a explosão, endêmica, da pedofilia, na forma atual do capitalismo. Nunca na história da humanidade tal prática esteve tão alastrada. Sinais dos tempos.

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