Me deparei com o artigo "O Wikileaks de Moniz Bandeira" no Escrevinhador. Excelente leitura. Interessante que eu tenho o livro desse autor e me lembrei como o adquiri.
Em 1999, eu trabalhava como assessor de um sindicato e cursava o 3.º ano da Faculdade de Direito. Fui eleito (democraticamente, sem as famigeradas "listas") delegado (duas vagas pela base; uma pela entidade) para o 46.º Congresso da UNE, sediado em Belo Horizonte.
No movimento estudantil as duas grandes forças da época aqui - e no Brasil todo - eram a UJS (braço estudantil do PCdoB) e o PSTU (que liderava o bloco com o sonoro nome "Rompendo Amarras").
Tínhamos mais dificuldades do que aproximações com as duas facções. Os tribuneiros (distribuidores do jornalzinho a Tribuna Operária, órgão do PCdoB durante algum tempo) nos recomendavam a leitura de "Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo", criticando nossa postura radical, intransigente e na perspectiva deles, sectária e inconsequente. Já os trotskistas orientavam a leitura de "A Revolução Proletária e o Renegado Kaustky", denunciando nosso comportamento excessivamente moderado, revisionista e por fim, os últimos dos xingamentos, "direitista" e "burguês".
Acatei as sugestões de leituras leninistas, mas acho que não corrigi meus desvios ideológicos mais graves. A pauta política do congresso, quase consensual, era o "Fora FHC". Não tínhamos peso político nenhum (imaginem: éramos cinco colegas, de um mesmo curso, de um mesmo Estado, de três faculdades). Mas o aprendizado foi intenso, e os contatos (que não viraram nada) riquíssimos: iam de uns "republicanos" do Largo São Francisco, à LBI (Liga Bolchevique Internacional) do Piauí, que bradava o refrão: "Oposição, unificada, é a direita disfarçada".
No mais, a eleição do novo presidente da UNE (ganhou um cara inexpressivo, Wadson Ribeiro, da UJS, como sempre) e o grande mote que me levou às alterosas: o discurso de abertura, com Fidel Castro.
Antes de ir, fui atrás de algum livro do Fidel, pois iria tietá-lo, pegar um autógrafo. Na livraria encontrei dois e comprei: "Fidel Castro por ele mesmo" (uma coletânea de citações. Legal, mas superficial) e o denso "De Marti a Fidel: A Revolução Cubana e a América Latina". A capa era essa aí do lado, não a atual. Confesso que viajei sem ler o livro, além de levar dois charutos que meu tio havia trazido de Cuba.
Viajamos de ônibus 1.000km para chegarmos em cima da hora. Essas viagens obedecem ao roteiro de farra até o esgotamento físico. Os mais fracos não aguentam sequer as brincadeiras. Depois, vêm as bebidas, e por fim as drogas. Não, congresso estudantil NUNCA tem mulher. No máximo, um viadinho que a galera do ônibus apelidou de Xupinski - em homenagem à estagiária da Casa Branca chegada num bola gato.
"Congresso vai, congresso vem, e eu ainda não comi ninguém", outro saudoso bordão.
Sou tímido, calado, não costumo entrar na bagunça. Mas eu precisava chegar acordado, estava eufórico ante o acontecimento que iria testemunhar em pouco tempo.
Depois de 16 horas na estrada chegamos. A maioria queria ir para os alojamentos: escolas públicas cujas salas de aulas haviam sido transformadas em dormitórios coletivos. Exceto para os amigos do rei, ou a patotinha bem relacionada com a UJS, que conseguiu albergues mais "seletivos".
Mas eu me opus: no ônibus nossa minoria de cinco já tinha algum peso político e rumamos direito para o Mineirinho, ginásio próximo à bela Lagoa da Pampulha. À mais de um quilometro de distância tivemos que parar e fomos à pé, com malas e sacolas às costas. Não sei quantas pessoas eram, mas minha sensação era de que a multidão beirava o infinito. Estava deslumbrado com tanta gente querendo debater política.
E sem maiores delongas, cerimonial simples. Hino nacional e composição da mesa de autoridades. Imediatamente, a palavra foi passada para o "comandante en jefe". Fidel falou por apenas três horas.
Vi alguns bravos colegas se renderem à exaustão e puxarem um ronco. Mas, para mim, aquele era um momento único: eu estava a poucos metros de quem FEZ a história que eu estudo. O conteúdo do discurso vai se perdendo, mas o magnetismo do orador e as circunstâncias formam na minha memória uma imagem de lutadores ouvindo seu líder repassar as últimas palavras de encorajamento antes da batalha...
...
Apesar de não perceber qualquer esquema de segurança, não consegui chegar perto a ponto de pedir o autográfo. Mas me vi de pé, frente a frente com quem ousou desafiar a maior potência da História. Um senhor já entrado em anos, mas altivo, com a postura característica, quepe e uniforme de mercenário, como ele mesmo diz.
O máximo de subversão que conseguimos foi quando o repórter da Globo tentou entrevistá-lo e a turba de umas 100 pessoas na qual me inseria começou a gritar: "O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo".
No alojamento, uma breve decepção: ficamos num quarto com uma turma de Marília-SP. A "agenda política" deles incluía viagens a Ouro Preto e aos bares mais badalados de BH. Foi o único ambiente fechado com neblina que eu conheci. Um colega nosso chegou a pegar um barato por tabela,
Já eu, do lado de fora, curtia meus dois Cohibas, olhar distante e sorriso no canto da boca, protegido do orvalho da noite, desligado do mundo real, imaginando utopias, sociedades justas, fraternas e igualitárias, inspiradas pelo idealismo daquele barbudo que saiu de Sierra Maestra para inscrever seu nome no panteão dos heróis da nossa época.
Leiam o artigo do Rodrigo Vianna. É muito melhor que essa babação de ovo aqui.
Em 1999, eu trabalhava como assessor de um sindicato e cursava o 3.º ano da Faculdade de Direito. Fui eleito (democraticamente, sem as famigeradas "listas") delegado (duas vagas pela base; uma pela entidade) para o 46.º Congresso da UNE, sediado em Belo Horizonte.
No movimento estudantil as duas grandes forças da época aqui - e no Brasil todo - eram a UJS (braço estudantil do PCdoB) e o PSTU (que liderava o bloco com o sonoro nome "Rompendo Amarras").
Tínhamos mais dificuldades do que aproximações com as duas facções. Os tribuneiros (distribuidores do jornalzinho a Tribuna Operária, órgão do PCdoB durante algum tempo) nos recomendavam a leitura de "Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo", criticando nossa postura radical, intransigente e na perspectiva deles, sectária e inconsequente. Já os trotskistas orientavam a leitura de "A Revolução Proletária e o Renegado Kaustky", denunciando nosso comportamento excessivamente moderado, revisionista e por fim, os últimos dos xingamentos, "direitista" e "burguês".
Acatei as sugestões de leituras leninistas, mas acho que não corrigi meus desvios ideológicos mais graves. A pauta política do congresso, quase consensual, era o "Fora FHC". Não tínhamos peso político nenhum (imaginem: éramos cinco colegas, de um mesmo curso, de um mesmo Estado, de três faculdades). Mas o aprendizado foi intenso, e os contatos (que não viraram nada) riquíssimos: iam de uns "republicanos" do Largo São Francisco, à LBI (Liga Bolchevique Internacional) do Piauí, que bradava o refrão: "Oposição, unificada, é a direita disfarçada".
No mais, a eleição do novo presidente da UNE (ganhou um cara inexpressivo, Wadson Ribeiro, da UJS, como sempre) e o grande mote que me levou às alterosas: o discurso de abertura, com Fidel Castro.
Antes de ir, fui atrás de algum livro do Fidel, pois iria tietá-lo, pegar um autógrafo. Na livraria encontrei dois e comprei: "Fidel Castro por ele mesmo" (uma coletânea de citações. Legal, mas superficial) e o denso "De Marti a Fidel: A Revolução Cubana e a América Latina". A capa era essa aí do lado, não a atual. Confesso que viajei sem ler o livro, além de levar dois charutos que meu tio havia trazido de Cuba.
Viajamos de ônibus 1.000km para chegarmos em cima da hora. Essas viagens obedecem ao roteiro de farra até o esgotamento físico. Os mais fracos não aguentam sequer as brincadeiras. Depois, vêm as bebidas, e por fim as drogas. Não, congresso estudantil NUNCA tem mulher. No máximo, um viadinho que a galera do ônibus apelidou de Xupinski - em homenagem à estagiária da Casa Branca chegada num bola gato.
"Congresso vai, congresso vem, e eu ainda não comi ninguém", outro saudoso bordão.
Sou tímido, calado, não costumo entrar na bagunça. Mas eu precisava chegar acordado, estava eufórico ante o acontecimento que iria testemunhar em pouco tempo.
Depois de 16 horas na estrada chegamos. A maioria queria ir para os alojamentos: escolas públicas cujas salas de aulas haviam sido transformadas em dormitórios coletivos. Exceto para os amigos do rei, ou a patotinha bem relacionada com a UJS, que conseguiu albergues mais "seletivos".
Mas eu me opus: no ônibus nossa minoria de cinco já tinha algum peso político e rumamos direito para o Mineirinho, ginásio próximo à bela Lagoa da Pampulha. À mais de um quilometro de distância tivemos que parar e fomos à pé, com malas e sacolas às costas. Não sei quantas pessoas eram, mas minha sensação era de que a multidão beirava o infinito. Estava deslumbrado com tanta gente querendo debater política.
E sem maiores delongas, cerimonial simples. Hino nacional e composição da mesa de autoridades. Imediatamente, a palavra foi passada para o "comandante en jefe". Fidel falou por apenas três horas.
Vi alguns bravos colegas se renderem à exaustão e puxarem um ronco. Mas, para mim, aquele era um momento único: eu estava a poucos metros de quem FEZ a história que eu estudo. O conteúdo do discurso vai se perdendo, mas o magnetismo do orador e as circunstâncias formam na minha memória uma imagem de lutadores ouvindo seu líder repassar as últimas palavras de encorajamento antes da batalha...
...
Apesar de não perceber qualquer esquema de segurança, não consegui chegar perto a ponto de pedir o autográfo. Mas me vi de pé, frente a frente com quem ousou desafiar a maior potência da História. Um senhor já entrado em anos, mas altivo, com a postura característica, quepe e uniforme de mercenário, como ele mesmo diz.
O máximo de subversão que conseguimos foi quando o repórter da Globo tentou entrevistá-lo e a turba de umas 100 pessoas na qual me inseria começou a gritar: "O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo".
No alojamento, uma breve decepção: ficamos num quarto com uma turma de Marília-SP. A "agenda política" deles incluía viagens a Ouro Preto e aos bares mais badalados de BH. Foi o único ambiente fechado com neblina que eu conheci. Um colega nosso chegou a pegar um barato por tabela,
Já eu, do lado de fora, curtia meus dois Cohibas, olhar distante e sorriso no canto da boca, protegido do orvalho da noite, desligado do mundo real, imaginando utopias, sociedades justas, fraternas e igualitárias, inspiradas pelo idealismo daquele barbudo que saiu de Sierra Maestra para inscrever seu nome no panteão dos heróis da nossa época.
Leiam o artigo do Rodrigo Vianna. É muito melhor que essa babação de ovo aqui.
2 comentários:
Me tire duas dúvidas:
Nesse congresso a musiquinha que você mais mais cantou foi " Cresce! Cresce! Sai da UJS!" ou "PSTU como é que é? Ninguém te ama, ninguém te quer!"?
Qual era a sua reação quando as pessoas escutavam esse relato e, simplesmente, falavam: "e daí?"?
Ah... esses musiquinhas...
"Um, dois três...
quatro, cinco, seis...
sete, oito, nove...
para doze faltam três"
Quanto à minha reação é de decepção, mas uma vez que encontrei o cunhado do Aristeu, nativo de Fortaleza, que se emocionou com essa história.
Postar um comentário