quarta-feira, 13 de novembro de 2013

OS REAÇA DA CLASSE MÉRDIA

Um artigo bombou: "Desvendando a espuma: o enigma da classe média brasileira", de Renato Santos de Souza, da Universidade Federal de Santa Maria, RS. Publicado em 30/10/2013, no Nassif, foi reproduzido por diversos blogs interessantes. No original, chegou a quase 500 comentários, o que ensejou a continuação: "Desvendando a espuma II: de volta ao enigma da classe média".

Além de recomendar entusiasticamente a leitura de ambos, quero expor algumas idéias relacionadas. O texto parte do espanto, e da posterior tentativa de entender os impropérios com que Marilena Chauí classifica a classe média: violenta, fascista e ignorante. Renato defende a tese verossímil de que o alicerce ideológico em que se funda o reacionarismo da classe média vem da sua particular interpretação e valoração da meritocracia.

Oras, num sistema que legitima a herança, a meritocracia é só um enfeite para a retórica mais demagoga. Na segunda geração, a proposta já está desvirtuada. Meritocracia pressupõe que, partindo de iguais condições, com as mesmas oportunidades, as pessoas alcancem resultados econômicos equivalentes aos seus esforços. Mas não estamos nesse estágio e as circunstâncias são brutalmente díspares. O "de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades"* é uma referência ao mérito não hipócrita: um vez satisfeitas as carências de todos os homens, o excedente estará disponível conforme a aptidão de cada um.

Outro problema do mérito é sua subjetividade. Esse talvez insolúvel. Depende mais do avaliador do que de quem recebe. Nos testes para habilitação, os candidatos rezam para pegar um instrutor mais condescendente, sendo que sua competência para dirigir não se altera em nada se cair com um examinador severo. Ou um professor que marque prova, sem falar qual é a matéria, qual a nota mínima para aprovação nem quais os critérios que utilizará. Quais os méritos "justos" para se valorar um sujeito perante a sociedade? Sem uniformidade total de raciocínio, que está longe de ser uma das metas da humanidade, o julgamento em que se baseia a meritocracia é inerente à moral do juíz.

Renato ressalva que não propõe a extinção dos concursos públicos, nem a volta das indicações para a ocupação dos cargos. Ele entende que um dos limites da meritocracia é justamente esse: no afã de criar critérios de aceitação universal, ela deixa de mensurar o mérito (aliás, sua conclusão é que o valor subjetivo do mérito é imensurável) e passa a verificar o desempenho. Logo, ao invés de vivermos uma meritocracia, estamos numa "desempenhocracia" e, levando-se em conta as relações sociais desiguais que perfazem a lógica do mercado e da sociedade capitalista, a outrora aceitável "ética do merecimento" se transforma na perversa "ética do desempenho".

Discussão do mérito à parte, tenho outras proposições. Na divisa entre Goiânia e Aparecida de Goiânia há um bairro em litígio, chamado popularmente de "Nem": nem Goiânia, nem Aparecida. Esquecido pelos dois poderes públicos. A classe média também se realiza nesse papel de encaixe: nem ricos, nem pobres;  nem detentores dos meios de produção, nem meras engrenagens do sistema produtivo; nem burgueses, nem proletários.

Por pressão social, a classe média é instável; por posição hierárquica é relativa e variável. Não existe "média" sem extremos e sua situação depende deles. Falamos de quem acabou de emergir dos estratos econômicos inferiores (fenômeno com que lidamos de maneira inédita, num país que incluiu 60 milhões de almas no mercado de consumo). De quem estacionou nessa faixa econômica, e não demonstra ímpeto em enriquecer. E como velhas e gordas ratazanas, parecem saciar-se com as migalhas caídas dos lautos banquetes dos poderosos. Ou ainda de quem imita e inveja o modus vivendi dos abastados, seu modelo cultural e seu padrão de enbanjamento. Então, a classe média é reacionária, mas há um erro conceitual em lhe tachar como "conservadora".

A classe média reage quando se opõe às políticas de inclusão social que podem lhe retirar o prestígio relativo de estar em posição superior aos pobres. Se estes ascenderem ao nível econômico da classe média, esta se tornará o quê? Por definição, não estará acima de ninguém. Ralé, chão, base da pirâmide social. Ser contra as cotas universitárias, médicos estrangeiros, bolsa família é o pano de fundo de defesa de uma posição, marcação de território. Mas nada calou tão fundo, no dia a dia da classe média, quanto a garantia dos direitos trabalhistas às empregadas domésticas. Era nessa relação suserano-vassalo que se manifestava de maneira mais evidente a supremacia classista sobre os miseráveis.

Já entre os que estão na classe média a algum tempo, ou se preparando para escalar os paredões do alpinismo social, o reacionarismo está na questão de se aferrar em privilégios históricos que constituem o ideal de vida. Desmontar a estrutura de regalias e benefícios que estão arraigados na sociedade pelo menos desde Cabral, agora que eles estão "chegando lá", seria uma injustiça desmedida. Eles também querem desfrutar da boquinha. É o que Veblen chamou de emulação pecuniária: indivíduos se comparam uns aos outros de forma a determinar quem é o melhor, ou quem é o vencedor, a disputa de egos e poder na arena econômica.

Para obter a estima de seus pares, não é suficiente a mera posse de poder ou riqueza. Há que se por em evidência e mostrá-las, como os fiscais da prefeitura de São Paulo apanhados em delito. Esta pantomima simbólica se materializa através da posse de certos bens, cujos anseios são infinitos, pois uma vez saciados todos os desejos, é inerente ao prórpio sistema a criação de necessidades artificiais. Como dizia a assinatura da marca Diesel, temos que buscar “The Successful Living”: o sucesso ou o poder são expressos pela posses de bens e marcas de prestígio, raras e pouco acessíveis. O status é algo tão irracional que bagunça qualquer teoria econômica pressuposta na razão.

A faculdade particular é o exemplo mais bem acabado desta realidade. Para ampliar o número de alunos e diminuir os problemas de inadimplência, decidem baixar os preços. O efeito é o reverso: a redução dá a entender que a qualidade caiu, junto com o prestígio da escola em si, causando uma queda correspondente na procura. Por outro lado, quando aumentam as mensalidades, cresce o número de matrículas. No entanto, há o problema prático de acessibilidade. A solução adotada por muitas instituições é incrementar simultaneamente o preço do ensino e a disponibilidade de auxílio financeiro e descontos para alunos carentes, o que permite que a instituição amplie o número de alunos matriculados, reforce seu “revestimento” de qualidade e pareça benevolente ao oferecer mais auxílio e descontos para os alunos. (…) essas táticas devem ser usadas com cuidado, pois os programas de auxílio ou descontos excessivamente abundantes minam o efeito.

Assim como as casas noturnas prediletas da classe média. Quanto mais cara, singifica melhor e mais bem frequentada, pois quem tá lá é quem teve grana/contato para entrar. E tem coisa melhor do que cair na night rodeado de gente rica e bonita? Ainda bem que nem todos pensam assim...




* "Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades" Karl Marx, Crítica ao Programa de Gotha, 1875.

3 comentários:

Apelido disponível: Sala Fério disse...

Muito bom! Seu texto e sua capacidade analítica são muito boas.

Apelido disponível: Sala Fério disse...

Correção: (ops) bons!

Marco disse...

Muito thanks!