Goiás, 23 de Maio de 2010. Concurso das Secretarias de Ciência e Tecnologia e de Educação do Estado. Cargo: professor de nível médio e fundamental. Exigência: licenciatura numa das disciplinas previstas em Edital. Número de vagas: 5581. Remuneração: variável, de acordo com a carga horária. Instituição organizadora do certame: UFG.
Até aí, uma notícia banal. corriqueira. Mas tive o desprazer de folhear uma prova. O primeiro impacto, digo texto, era retirado do caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo*, de 05 de abril de 2010. O autor, um tal de Luiz Felipe Pondé, um colonista de nenhuma repercussão, com o qual, por azar, eu já havia travado contato.
Contato meramente acadêmico, diga-se de passagem. Afinal, é mais um megafone a reproduzir o discurso que as elites preparam nos vetustos ambientes universitários. Cada vez mais inócuo, cada vez mais distante da realidade. Bom, para não me alongar demais, a explicação é que ele é filósofo, e eu, quixotescamente, travei uma batalha contra a filosofia. Um dos subprodutos desse conflito foi a necessidade de militar em algo mais popular, como a imprensa livre na internet. Um outro resultado foi esse artigo.
Mas, voltando ao tal artigo que iniciava a prova do concurso, intitulado “De 1984 a 2010”, ele reproduz sem escrúpulos a mais falsa panacéia criada pelas mentas corruptas e pervertidas que se encontram em vantagem no nosso modelo político e econômico (disponível para assinantes do UOL. Vasculhando, achei-o reproduzido num blog de esgoto. Até que o debate nos comentários, sustentado por Filipe Calvário, é interessante).
Liberdade é uma palavra. Os significados que se associam a ela são os mais diversos. O argumento do texto vai no sentido de que o “politicamente correto” oprime a liberdade dele. Principalmente dele, pois é a sua perspectiva que sofre com as limitações da vida em sociedade. Não estou aqui para defender o politicamente correto, apenas para demonstrar a falta de conteúdo do intelectual e preocupação com a escolha desse artigo oco para avaliar os professores estaduais.
Para não dar muita vazão a sua pobreza política ele mesmo assume, sem mais delongas, “A minha [política] pode ser entendida como uma política herdada de autores como Isaiah Berlin... prefiro sempre os britânicos aos franceses ou alemães... prefiro a liberdade à felicidade”. E aí que começa o problema. Senão vejamos as preocupações infantilóides que estão no jornal e no concurso: “O Canadá é um dos países mais totalitários no que se refere à repressão ao uso livre da linguagem e à crítica aos costumes da nova casta fascista que empesteia o mundo”; “Tiraram o cachimbo da boca do Saci. Eu, que sou um amante de cachimbos e charutos cubanos (e viva la Revolución!!), me senti diretamente afetado”; “O fascismo 'verde' chega ao ponto de tirar das crianças uma música divertida para torná-las defensoras dos gatos” (no caso, atirei o pau no gato); “Como era bom jogar baratas mortas no lanche das meninas só para ver elas pularem deliciosamente das suas cadeiras em lágrimas”.
Nesse samba do crioulo doido, tudo que contraria esse marmanjo imaturo se mistura com o ideal político que ele detesta. A sociedade vaticinada por Orwell está acontecendo por que ele não tem mais liberdade para jogar baratas na comida alheia, nem para fumar seus fétidos cachimbos pouco se importando com os demais. Isso é totalitarismo, revolução cultural chinesa (!), revolução cubana, ideais franceses... ou seja, tudo que foge da visão liberal e neoliberal do mundo não presta e atrapalha o mimado articulista.
Mas isso absolutamente não importa. Talvez um pequeno choque de vida severina fosse a posologia suficiente para cura dessa aborrescência tardia. O que preocupa é esse texto ser usado como balizamento na prova dos professores. Alguém mais colérico já iria à beira de uma crise de nervos com tamanha sandices. “É um teste também para o controle emocional” replicaram os otimistas.
O entendimento e assimilação do texto é condição de aprovação no concurso. Quem o aceita e faz eco se encaixa no estereótipo de “educador dos extratos mais rampeiros” da sociedade. Já quem imagina uma sociedade diferente, onde não se jogam baratas para apavorar e impressionar as meninas, está fora do padrão estabelecido. Quem pensa em brincadeiras como forma de emancipar, e não de intimidar, é considerado “politicamente correto”. Quem pensa em liberdade para todos, com as devidas preocupações sociais e ambientais que o mundo de hoje inspira, graças a degradação que o capitalismo impôs, é carta fora do baralho. A academia moderna, pensada pelo e para o capital, não poderia se auto-destruir, plantando em suas sendas as sementes da revolução.
E esse duro papel, é o que está reservado ao professor das gerações vindouras, de um país que apesar da mentalidade da sua elite, teima em se insubordinar contra quem insiste em mantê-lo na pequenez de seus próprios horizontes.