sábado, 29 de maio de 2010

QUE TIPO DE INTELECTUAL ESTÁ AO LADO DO POVO?

Goiás, 23 de Maio de 2010. Concurso das Secretarias de Ciência e Tecnologia e de Educação do Estado. Cargo: professor de nível médio e fundamental. Exigência: licenciatura numa das disciplinas previstas em Edital. Número de vagas: 5581. Remuneração: variável, de acordo com a carga horária. Instituição organizadora do certame: UFG.

Até aí, uma notícia banal. corriqueira. Mas tive o desprazer de folhear uma prova. O primeiro impacto, digo texto, era retirado do caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo*, de 05 de abril de 2010. O autor, um tal de Luiz Felipe Pondé, um colonista de nenhuma repercussão, com o qual, por azar, eu já havia travado contato.

Contato meramente acadêmico, diga-se de passagem. Afinal, é mais um megafone a reproduzir o discurso que as elites preparam nos vetustos ambientes universitários. Cada vez mais inócuo, cada vez mais distante da realidade. Bom, para não me alongar demais, a explicação é que ele é filósofo, e eu, quixotescamente, travei uma batalha contra a filosofia. Um dos subprodutos desse conflito foi a necessidade de militar em algo mais popular, como a imprensa livre na internet. Um outro resultado foi esse artigo.

Mas, voltando ao tal artigo que iniciava a prova do concurso, intitulado “De 1984 a 2010”, ele reproduz sem escrúpulos a mais falsa panacéia criada pelas mentas corruptas e pervertidas que se encontram em vantagem no nosso modelo político e econômico (disponível para assinantes do UOL. Vasculhando, achei-o reproduzido num blog de esgoto. Até que o debate nos comentários, sustentado por Filipe Calvário, é interessante).

Liberdade é uma palavra. Os significados que se associam a ela são os mais diversos. O argumento do texto vai no sentido de que o “politicamente correto” oprime a liberdade dele. Principalmente dele, pois é a sua perspectiva que sofre com as limitações da vida em sociedade. Não estou aqui para defender o politicamente correto, apenas para demonstrar a falta de conteúdo do intelectual e preocupação com a escolha desse artigo oco para avaliar os professores estaduais.

Para não dar muita vazão a sua pobreza política ele mesmo assume, sem mais delongas, “A minha [política] pode ser entendida como uma política herdada de autores como Isaiah Berlin... prefiro sempre os britânicos aos franceses ou alemães... prefiro a liberdade à felicidade”. E aí que começa o problema. Senão vejamos as preocupações infantilóides que estão no jornal e no concurso: “O Canadá é um dos países mais totalitários no que se refere à repressão ao uso livre da linguagem e à crítica aos costumes da nova casta fascista que empesteia o mundo”; “Tiraram o cachimbo da boca do Saci. Eu, que sou um amante de cachimbos e charutos cubanos (e viva la Revolución!!), me senti diretamente afetado”; “O fascismo 'verde' chega ao ponto de tirar das crianças uma música divertida para torná-las defensoras dos gatos” (no caso, atirei o pau no gato); “Como era bom jogar baratas mortas no lanche das meninas só para ver elas pularem deliciosamente das suas cadeiras em lágrimas”.

Nesse samba do crioulo doido, tudo que contraria esse marmanjo imaturo se mistura com o ideal político que ele detesta. A sociedade vaticinada por Orwell está acontecendo por que ele não tem mais liberdade para jogar baratas na comida alheia, nem para fumar seus fétidos cachimbos pouco se importando com os demais. Isso é totalitarismo, revolução cultural chinesa (!), revolução cubana, ideais franceses... ou seja, tudo que foge da visão liberal e neoliberal do mundo não presta e atrapalha o mimado articulista.

Mas isso absolutamente não importa. Talvez um pequeno choque de vida severina fosse a posologia suficiente para cura dessa aborrescência tardia. O que preocupa é esse texto ser usado como balizamento na prova dos professores. Alguém mais colérico já iria à beira de uma crise de nervos com tamanha sandices. “É um teste também para o controle emocional” replicaram os otimistas.

O entendimento e assimilação do texto é condição de aprovação no concurso. Quem o aceita e faz eco se encaixa no estereótipo de “educador dos extratos mais rampeiros” da sociedade. Já quem imagina uma sociedade diferente, onde não se jogam baratas para apavorar e impressionar as meninas, está fora do padrão estabelecido. Quem pensa em brincadeiras como forma de emancipar, e não de intimidar, é considerado “politicamente correto”. Quem pensa em liberdade para todos, com as devidas preocupações sociais e ambientais que o mundo de hoje inspira, graças a degradação que o capitalismo impôs, é carta fora do baralho. A academia moderna, pensada pelo e para o capital, não poderia se auto-destruir, plantando em suas sendas as sementes da revolução.

E esse duro papel, é o que está reservado ao professor das gerações vindouras, de um país que apesar da mentalidade da sua elite, teima em se insubordinar contra quem insiste em mantê-lo na pequenez de seus próprios horizontes.

5 comentários:

Roberto Ilia disse...

Caro Marco,

Como colaborador do blog Terra Goyazes, agradeço sua visita. Inserimos também o seu link em nossos preferidos.

Abraço de resistência,

Roberto Ilia

patrick disse...

Pois é, Marco, como em quase toda seara o mundo acadêmico é também palco da luta de classes. Infelizmente nos últimos vinte ou trinta anos a direita tem ocupado os espaços disponíveis na academia. Um dos motivos para isso talvez seja o fato que as vagas das universidades públicas são quase todas ocupadas pelos filhos das classes mais abastadas, consumidoras por excelência das idéias oriundas da grande mídia golpista. Suas idéias já chegam deformadas e repletas de preconceitos em relação a tudo o que seja diferente de seu confortável mundinho. Os professores universitários atuais foram formados, em grande medida, em seus mestrados e doutorados, no final dos anos oitenta ou nos anos noventa -momento de euforia neoliberal - sendo, assim, mais fácil apenas emular as idéias consoantes com os princípios da elite globalizada. Grande parte dos intelectuais progressistas da academia já se aposentaram ou estão em vias de se aposentar e acabam sendo alijados da política interna da academia, reservando-lhe o papel de retratos nas paredes dos corredores dos departamentos, como se fossem símbolos de uma época longínqua e que não guarda conexão com os novos tempos de pasteurização do ensino em todos os níveis.
É sintomático que a famigerada revista Veja bata tão insistentemente em interpretações dos fatos, principalmente na história e na geografia, oriunda dos anos sessenta. O que está em voga agora é uma interpretação pós-moderna, relativista, na qual não existe espaço para as grandes forças subterrâneas da história, por exemplo, como a economia; Essa nova interpretação está mais voltada para o que poderíamos chamar de uma microfísica -talvez herança de Foucault - dos acontecimentos, centrada no indivíduo e em causas outras não identificadas com as infraestrutura marxista, como abordagens culturalistas, por exemplo.
As ciências humanas são vistas atualmente como narrativas construídas por essas microrelaçõs desprovidas de causas últimas. O texto utilizado no concurso que você cita me parece ir nesse sentido.

Jbmartins-Contra o Golpe disse...

"O motivos para isso talvez seja o fato que as vagas das universidades públicas são quase todas ocupadas pelos filhos das classes mais abastadas", a elite café com leite; Coitado acostumado a viver sob Ditabranda, agora que tem Liberdade de verdade, não pode se expressar, tem que seguir a cartilha do Patrão.

Marco disse...

Amigos, tudo isso é fato. E é preocupante. Mas eu gostaria de dar maior ênfase em dois pontos.
Primeiro é que estamos tratando de um concurso para nível médio e fundamental. Assim, o professor que está sendo avaliado por essa prova já ouviu toda papagaiada durante sua formação. O que é absurda é a desfaçatez de aplicar a prova com esse tipo de citação. Imagina só a reação da direita se os textos abordassem uma temática progressista. Para quem não se lembra, temos o caso do ENEM, que chegou a ser anulado por isso!
Outro ponto é que isso não causará espécie alguma, visto que os filhos de "quem importa" jamais sujarão seus tênis importados no chão de uma escola pública. E é por isso que o título do post é uma indagação: que tipo de intelectual lutará ao lado do povo?

patrick disse...

Marco,eu imagino que uma possível resposta para sua pergunta sobre "que tipo de intelectual lutará ao lado do povo" seria o intelectual renegado pela mídia gorda ou então aquele que tiver energia suficiente para entrar nos espaços ocupados pela direita (universidades, administração pública, a própria mídia, etc) e lutar contra a potência do capital.
O que pode causar uma profunda tristeza é o fato de que o texto que você alude muito provavelmente foi considerado um bom texto por vários candidatos e seu autor tratado como uma referência no assunto.