domingo, 16 de maio de 2010

A CONVENIÊNCIA DAS CRISES

Marx preconizou crises cíclicas no capitalismo. Elas descrevem um movimento espiral, com seu fluxo tendendo ao vórtice (o olho do furacão) e se expressam ou como excesso de produção, quando há mais oferta que procura e a demanda não dá conta de todos os produtos disponíveis no mercado, ou como crise de acumulação de capitais, quando as interferências especulativas criam bolhas mercadológicas sem lastro. Num caso ou no outro, além das causas imediatas e das circunstâncias específicas de cada crise, opera a lei da tendência decrescente da taxa de lucro. Na medida em que o ciclo afina sua espiral, o funil do mercado se torna mais apertado, diminui o lucro e aumenta a “competitividade”. Marx não vaticinou, porém, as soluções de Keynes para o problema. A pressão sobre a taxa de lucro poderia fazer ruir não apenas cada empreendedor, mais o sistema todo, como quase aconteceu em 1929. Ao legado de Keynes, creditamos a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), originado na lendária conferência de Bretton Woods, sempre abastecido pelos Estados mais ricos e conseqüentemente mais interessados na estabilidade econômica mundial, com o objetivo de assegurar o bom funcionamento do sistema financeiro mundial amortecendo possíveis choques econômicos.

A bola da vez é a Grécia. Berço cultural da humanidade; fiel da balança na partilha européia pós-guerra: o leste, zona de influência soviética, ficaria com esse “enclave” ocidental, afiliado à OTAN, reconstruído com dinheiro ianque, e reverberando valores caros à democracia liberal burguesa, a livre iniciativa econômica e a liberdade de imprensa. Pois bem, as benesses concedidas aos cidadãos em nome da suposta tranqüilidade política agora são acusadas de vilania, quando o Estado grego passa o chapéu na banca internacional. O raciocínio vendido pelo PIG como verdade inquestionável é simples: a rede de proteção social do Welfare State tornou-se onerosa por demais em dias de tamanha necessidade de eficiência e eficácia produtiva. O conforto de um colchão de prosperidade ilusória que funcionava como propaganda ideológica na Guerra Fria não faz mais sentido. Os dinossauros serão extintos. A lei da selva é implacável.

Depois da automação industrial, o preço do trabalho humano é sempre alto, por mais degradantes que sejam as condições de trabalho. Ainda que sejam deploráveis as condições, trata-se de humanos, não de máquinas. Rússia, Coréia do Sul, Taiwan, Argentina, México. Já vimos esse filme, mesmo em projetores que nunca foram sociais-democracias com grande papel público na provisão do bem estar social, ao estilo europeu. Nessas localidades, a substituição de operários pelo maquinário não se completou graças ao atraso tecnológico, ou quando se completou amparou-se em especulação financeira. A desculpa do “custo-país” também foi utilizada na Islândia, Estado insolvente que só não teve maior repercussão pela sua diminuta população.

Para pagar o pato, ou melhor, a dívida publica, é conclamada a presença daqueles que não auferiram grandes ganhos com a ciranda financeira. Quando muito, passaram a andar de carro novo, possuir eletrônicos e outros fetiches consumistas. Não são as grandes empresas que assinarão o cheque, muito pelo contrário. Elas ganham com a crise na exata medida da supressão dos direitos sociais e do aumento de preços, elevando artificialmente a taxa de lucro aos patamares de antanho, contrariando a tendência irresistível do sistema. Não precisa ser vidente para perceber que a próxima crise sobrevirá com ímpeto muito maior. Mas voltando a essa, quem vai pagar é o Estado, tanto grego quanto dos países financiadores, mas na figura do contribuinte, que é o mesmo cidadão trabalhador que tem seus salários achatados, seus direitos arrancados e os impostos majorados.

Aqui o Estado revela sua face mais perversa: é um instrumento de classe. Um instrumento gigantesco, que interfere controlando a vida das pessoas em todas as áreas da existência. Usando uma terminologia mais marxista, uma estrutura – determinada pela superestrutura econômica. E também pertencente a uma classe, aquela que terá seus interesses defendidos a unhas e dentes, nem que seja necessário botar a polícia em cima dos financiadores (cidadãos), causando um paradoxo que não é nítido graças à alienação em que vivemos. Para nublar ainda mais o pensamento, a força da ideologia nos faz crer que o trabalhador hoje é um colaborador do sistema que o aliena ou, voltando a Adam Smith, a soma dos esforços individuais traduz-se em ganhos coletivos. Discurso velho em roupagem nova.

A precarização do trabalho se materializa de inúmeras maneiras. Impressiona a capacidade de adaptação do capital, invariavelmente solapando seu contraponto, o trabalho. Há gente dizendo, e não estamos falando da mãe Dinah, que o trabalho sofreu mais alguns golpes nessa última crise que ainda não acabou. Postos protegidos pelas legislações foram perdidos e não serão recuperados apontando para um desmanche gradual das conquistas sociais dos trabalhadores. O capital teve forçosamente que transformar a relação de trabalho para assentar a maximização dos lucros, haja vista o aperto da espiral, numa “fantasmagoria absolutamente etérea que não encontra respaldo no mundo físico”. Nos moldes de social democracia européia, o capitalismo já teria falido, advindo provavelmente a barbárie, com homens – capitalistas e trabalhadores – disputando a sobrevivência com poucos recursos, como bestas-feras num cativeiro jamais reabastecido.

A lei da tendência decrescente da taxa de lucro é a bomba relógio do capitalismo. A única salvação é a utilização do aparelho estatal para tomar o dinheiro das pessoas e tampar momentaneamente o dique que está prestes a explodir. A capacidade de resistência das pessoas é bombardeada por todos os lados, e as tensões estão à flor da pele, mas isso não aparece nas manchetes do PIG, pois poderia “despertar algumas pessoas do sono doce e letárgico do consumo inflado a crédito e endividamento”.


2 comentários:

patrick disse...

Excelente texto, Marco. Ele levanta a bola para vários chutes e outras maquinações. Parafraseando o velho Karl, qual seria o ópio do mercado? me parece ser a socialização dos prejuízos.Em menos de dois anos, já houve dois pacotes trilionários para recuperar o mercado das suas lambanças. Papéis que valem tanto quanto lixo serão comprados com o dinheiro oriundo da poupança acumulada dos trabalhadores e, suprema ironia, os trabalhadores serão "convidados" a arcar com todos os prejuízos advindos da solução teimosamente neoliberal adotada pelo FMI e quejandos: cortes em salários,benefícios e redução dos postos de trabalho. Todos sabem que as ajudas oficiais ao mercado são paleativas, mas os governos, como instrumento de classe, não cogita permitir a falência dos especuladores financeiros ou tomar medidas estatizantes para retirar do mercado as rédeas do atual processo. Ao ler o seu texto, me lembrei de uma imagem das aulas de física que falavam sobre a entropia (medida da desordem de um sistema) e de como seria impossível, devido à quantidade absurda de energia, zerar tal entidade; a desesperada reação do mercado e dos governos me lembram um pouco uma tentativa de se eliminar a entropia do modelo de acumulação capitalista, que tende ao absoluto caos. Será que existe energia (dinheiro e trabalho real) suficiente para "consertar" a natureza? Uma outra pergunta me vem à cabeça: todos esses trilhões que foram consumidos até agora na ajuda aos bancos, seguradores, empresas, etc são assentados realmente na poupança acumulada ou se trataria tambem de papéis podres, apenas números em uma tela de computador?

Marco disse...

São questões interessantes, meu bom amigo. Não havia pensado a respeito do que seria o ópio do mercado, mas intuo que seja o discurso padrão de corte nos gastos, ajuste fiscal, "fazer o dever de casa". Sobre o figura da entropia, e o que eu quis dizer com "bomba-relógio", algo de tal forma reprimido e concentrado que, quando libertado causará a destruição de tudo que estiver por perto. Se nós, enquanto especie humana, sobrarmos, vamos ter que dividir o resto do cataclismo.
Suas duas últimas perguntas também promovem debate interessantes: imaginar que, para curar os papéis podres se usem outros papéis podres reforça a teoria da bola de neve, de que a cada crise, a sucessiva é mais grave...